Violência doméstica contra a mulher

Mãe e filha chorando sentadas em um sofá, ambas de cabeça baixa

A Súmula 542 do Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que o crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é ação penal pública incondicionada[1].

Esse posicionamento sumular compartilha do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, no julgamento da ADI 4.424/DF, que declarou a constitucionalidade do artigo 41, da Lei nº. 11.340/2006[2], no sentido de que o crime de lesão corporal, leve ou culposa, praticado contra mulher, no ambiente familiar, dever ser processado mediante ação penal pública incondicionada.

A ação penal pública incondicionada é promovida pelo Ministério Público sem que haja necessidade de manifestação da vítima ou de qualquer outra pessoa.

No entanto, o Judiciário deixou de observar o ciclo da violência doméstica ao privilegiar apenas o crime de lesão corporal, com a ação penal pública incondicionada, em detrimento das outras lesões provocadas no ambiente familiar, as quais necessitam de representação da vítima.

É importante esclarecer que o ciclo da violência doméstica[3] está dividido em três fases, quais sejam:

a) Primeira Fase – Aumento da Tensão -, onde o agressor se mostra tenso, irritado por coisas insignificantes, tendo acessos de raiva, humilhando e ameaçando-a, destruindo objetos, provocando na vítima sensações de tristeza, angústia, ansiedade;

b) Segunda Fase – Ato de Violência -, o ofensor materializa a violência verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial, considerando a tensão acumulada na fase 01, levando a vítima a buscar ajuda, denunciando o agressor; e,

c) Terceira Fase – “Lua de Mel” -, caracterizada pelo arrependimento do agressor que se torna amável para conseguir uma reconciliação.

Salienta-se que na fase 01, do ciclo da violência, as atitudes perpetradas pelo agressor podem durar anos, o que leva a vítima negar que está em situação de violência doméstica, escondendo, inclusive, das pessoas próximas, pois muitas vezes acha que a culpa é dela, acreditando que fez algo de errado para justificar o comportamento violento do agressor, ou que “ele teve um dia ruim no trabalho”, por exemplo.

Com isso, tem-se que na fase 02 do ciclo da violência, mesmo a vítima tendo consciência do comportamento destrutivo em relação à sua vida, ainda assim, esta mulher tem o sentimento de impotência, pois sente medo, ódio, solidão, vergonha, dor, e é claro que terá dificuldades de representar contra o agressor.

Caso a vítima busque ajuda junto à delegacia, realizando o termo circunstanciado acerca do crime de ameaça sofrido, por exemplo, este tem natureza de ação penal pública condicionada à representação da ofendida, nos termos do artigo 16, da Lei n. 11.340/2006[4] a qual poderá renunciar à representação perante o magistrado em audiência designada para este fim, antes do recebimento da denúncia, e desde que o membro do parquet seja ouvido.

O lapso temporal entre a representação e a audiência ocorrerá a fase 03 do ciclo da violência, caracterizada pelo arrependimento do agressor, onde a mulher se sente confusa e pressionada a manter o seu relacionamento diante da sociedade, sobretudo se o casal tiver filhos.

Além disso, verifica-se um período de calmaria, onde existe a demonstração de remorso do agressor, e a vítima se sente responsável pelo ofensor, estreitando, assim, a relação entre eles.

Dessa maneira, o agente percebe a fragilidade da vítima, e reitera o seu comportamento de forma mais agressiva, aprofundando o problema da violência doméstica, afastando assim, a formalização de nova representação.

É importante pontuar que historicamente as mulheres sofrem violência tanto na esfera pública quanto na privada, visto terem sido posicionadas em uma relação de poder desigual, sendo subjugadas e discriminadas.

Para o professor Rogério Greco[5], “(…) deixar a mulher – autora da representação – decidir sobre o início da persecução penal significaria desconsiderar a assimetria do poder decorrente de relações histórico-culturais, bem como outros fatores, tudo a contribuir para a diminuição de sua proteção e a prorrogar o quadro de violência, discriminação e ofensa à dignidade humana. (…), impedindo-a de romper com o estado de submissão (…)”.

Insta ressaltar que em 2012, quando do julgamento da ADI 4.424/DF, restou consignado que a legislação ordinária protetiva prevista nos artigos 1º, III; e 5º, I e XLI, ambos da Carta Magna de 1988 estaria em sintonia com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e com a Convenção de Belém do Pará.

Desde o julgamento da ADI 4.424/DF já se passaram oito anos, e os crimes contra mulher, no âmbito doméstico, aumentaram vertiginosamente, inclusive durante a pandemia, onde o isolamento social foi imposto para evitar a propagação da COVID-19, permitindo o convívio maior entre a vítima e o agressor.

Assim sendo, verifica-se que os delitos cometidos contra a mulher em âmbito familiar devem assentar natureza incondicionada da ação penal, pois a vítima não tem condições de decidir como será a sua proteção realizada pela atuação estatal, visto as agressões emocionais sofridas, durante o relacionamento com o agressor.

E, mais. A natureza incondicionada da ação penal não impedirá a violência no âmbito familiar, mas poderá quebrar o ciclo da violência doméstica, quando o agressor cometer o crime de ameaça, por exemplo, na fase 02.

Ao final, tem-se que compete ao Estado garantir a todos os brasileiros direitos fundamentais previstos na Constituição Cidadã de 1988, dentre eles o direito a dignidade da pessoa humana, onde mulheres e homens possam conviver harmoniosamente, inclusive no ambiente familiar, e no caso do rompimento desta fruição, a implementação de políticas públicas é medida necessária para o devido restabelecimento.


[1] “A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada.” (Súmula 542, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/08/2015, DJe 31/08/2015).

[2] Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.

[3] https://www.institutomariadapenha.org.br/violencia-domestica/ciclo-da-violencia.html

[4] Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

[5] GRECO, Rogério. Código Penal: comentado/Rogério Greco. – 9 ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2015.

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