INFLAMÁVEIS CONTIDOS EM TANQUES DE COMBUSTÍVEL PARA USO PELO PRÓPRIO VEÍCULO NÃO CONFIGURAM PERICULOSIDADE POR NÃO SER CASO DE TRANSPORTE DE INFLAMÁVEL

Felippe Martins Brasiliense de Souza Curia

RESUMO: Realiza-se análise sobre a situação de inflamável em tanque de combustível destinado ao consumo próprio do veículo ser considerado pela Justiça do Trabalho como transporte de inflamável para condenar empresas a pagar adicional de periculosidade, quando a lei determina que é caso em que não existe periculosidade. A nova Lei 14.766 de 22 de dezembro de 2023 incluiu o § 5º ao art. 193 da CLT no mesmo sentido da NR-16 do MTE para afastar a periculosidade. São destacadas decisões de TRT e TST sobre a matéria comparando com a nova norma jurídica.

Foi incluído o § 5º no art. 193 da CLT sobre inflamável em tanque de combustível. Este novo dispositivo, incluído pela Lei 14.766 de 22 de dezembro de 2023, pacificou a matéria sobre a quantidades de inflamáveis contidas nos tanques de combustíveis originais de fábrica e suplementares, para consumo próprio de veículos de carga e de transporte coletivo de passageiros, de máquinas e de equipamentos, determinando que, neste caso, inexiste periculosidade.


[1] Advogado, Mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Pós-Graduado em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Previdenciário pela Faculdade IDC/RS (2012), Pós-Graduado em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012).

Não se trata de novidade em si porque a matéria já estava prevista em dispositivo da NR-16 do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), itens 16.6.1 e 16.6.1.1 que, entretanto, não era aplicado pela Justiça do Trabalho. Ou seja, por mais que a lei autorizasse que o MTE regulasse a matéria, conforme caput do art. 193 da CLT, isso era ignorado pela Justiça do Trabalho (TRTs e TST), restando evidente que era perpetrada uma violação ao princípio da legalidade, resultando numa injustiça que tem sido promovida há anos em face de empresas de transporte de cargas, transporte coletivo de passageiros, máquinas e equipamentos.

Transcrevem-se as redações da NR-16 do MTE, itens 16.6.1 e 16.6.1.1, e do § 5º no art. 193 da CLT:

Art. 193. São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem risco acentuado em virtude de exposição permanente do trabalhador a:                         (Redação dada pela Lei nº 12.740, de 2012)   § 5º O disposto no inciso I do caput deste artigo não se aplica às quantidades de inflamáveis contidas nos tanques de combustíveis originais de fábrica e suplementares, para consumo próprio de veículos de carga e de transporte coletivo de passageiros, de máquinas e de equipamentos, certificados pelo órgão competente, e nos equipamentos de refrigeração de carga.” (NR)  16.6 As operações de transporte de inflamáveis líquidos ou gasosos liquefeitos, em quaisquer vasilhames e a granel, são consideradas em condições de periculosidade, exclusão para o transporte em pequenas quantidades, até o limite de 200 (duzentos) litros para os inflamáveis líquidos e 135 (cento e trinta e cinco) quilos para os inflamáveis gasosos liquefeitos.   16.6.1 As quantidades de inflamáveis, contidas nos tanques de consumo próprio dos veículos, não serão consideradas para efeito desta Norma.   16.6.1.1 Não se aplica o item 16.6 às quantidades de inflamáveis contidas nos tanques de combustível originais de fábrica e suplementares, certificados pelo órgão competente. (Incluído pela Portaria SEPRT n.º 1.357, de 09 de dezembro de 2019)  

A situação supra referida sobre a Justiça do Trabalho deixar de observar a NR-16, que já eximia o empregador de pagar adicional de periculosidade, está evidenciada no aresto seguir colacionado retirado de repositório autorizado pelos tribunais superiores como o TST:

17810495 – ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. TANQUE SUPLEMENTAR DE COMBUSTÍVEL. JURISPRUDÊNCIA ATUAL DO TST. O Colendo TST “tem decidido reiteradamente ser devido o adicional de periculosidade ao motorista que dirige veículo com tanque adicional de combustível com capacidade superior a 200 litros, ainda que originais de fábrica e destinados ao consumo do próprio veículo, por equivaler ao transporte de líquido inflamável, de acordo com o art. 193, I, da CLT, e o item 16.6 da NR 16 da Portaria nº 3.214/78 do MT, o que afasta a aplicação da exceção prevista no subitem 16.6.1” (AIRR. 10460-52.2017.5.15.0149; Órgão Judicante: 3ª Turma; Relator: Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira; Julgamento: 01-9-2021; Publicação: 10-9-2021; negritei). Em igual sentido: “A SBDI-1 desta Corte uniformizadora firmou entendimento no sentido de a utilização de tanque de combustível suplementar com capacidade superior a 200 litros, ainda que destinado ao consumo próprio do veículo, equipara- se a transporte de combustível para fins de caracterização da condição de risco. (TRT 3ª R.; ROT 0010274-40.2023.5.03.0056; Quarta Turma; Rel. Des. Paulo Chaves Correa Filho; Julg. 02/02/2024; DEJTMG 05/02/2024; Pág. 667). Exclusividade Magister Net: Repositório autorizado On-Line do STF nº 41/2009, do STJ nº 67/2008 e do TST nº 35/2009.

Como se pode perceber a Justiça do Trabalho, ignorando a NR-16 do MTE, tratou de decidir de forma contrária à NR-16, tendo determinado que, se um veículo possui tanque adicional superando 200 litros, ainda que o combustível nele contido seja para consumo próprio, fica caracterizado o transporte de inflamáveis. E a decisão supra transcrita, como é possível verificar, foi proferida em 02/02/2024, quando a alteração legislativa foi promovida em 22/12/2023, sendo vigente desde sua publicação. Assim, resta claro que ainda há dissenso entre o que entende o Judiciário e o que consta na Lei.

Ou seja, vemos o Justiça laboral decidindo conforme entendimentos sedimentados por ela própria, sem base legal que a sustente, mesmo depois da nova norma vigente, § 5º no art. 193 da CLT, que apenas reitera o disposto na NR-16, vide itens 16.6.1 e 16.6.1.1., supra transcritos, quando se trata de uma norma jurídica objetiva quanto a qual não cabe interpretação diversa a alterar o seu sentido. E isso resta ainda mais evidente em razão de julgado da 8ª Turma do TST que decidiu por observar e aplicar a NR-16, acusando a violação ao princípio da legalidade reformando decisão de TRT em sentido contrário.

Confira-se o acórdão da 8ª Turma do TST demonstrando que o Tribunal pode estar no rumo de modificar seu entendimento e aplicar o disposto na NR-16 e no § 5º no art. 193 da CLT. Apesar de ser um julgado extenso, é recomendada a leitura para compreensão sobre o tema:

86000191 – I. AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERPOSTO PELA RECLAMADA. INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. 1. ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. CONDUÇÃO DE VEÍCULO COM TANQUE SUPLEMENTAR. CONSUMO PRÓPRIO. TRANSCENDÊNCIA RECONHECIDA. Considerando a existência de questão nova a respeito da aplicação do disposto no item 16.6. 1.1 da NR-16, incluído pela Portaria da SEPRT nº 1.357/2019, deve ser reconhecida a transcendência jurídica da causa, nos termos do artigo 896-A, § 1º, IV, da CLT. Ante a possível violação do artigo 5º, II, da Constituição Federal, o processamento do recurso de revista é medida que se impõe. Agravo de instrumento a que se dá provimento. II. RECURSO DE REVISTA DA RECLAMADA. 1. ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. CONDUÇÃO DE VEÍCULO COM TANQUE SUPLEMENTAR. CONSUMO PRÓPRIO. PROVIMENTO. A controvérsia dos autos centra-se em definir se o empregado que conduz veículo equipado com tanque suplementar de combustível, ainda que para consumo próprio, com capacidade superior a 200 litros, faz jus ao recebimento do adicional de periculosidade. O tema em discussão encontra-se disciplinado na Norma Regulamentadora nº 16 do MTE, aprovada pela Portaria nº 3.214/1978, que, em seu item 16.6. estabeleceu que as operações de transporte de inflamáveis líquidos ou gasosos liquefeitos, em quaisquer vasilhames e a granel, são consideradas em condições de periculosidade, exclusão para o transporte em pequenas quantidades, até o limite de 200 (duzentos) litros para os inflamáveis líquidos e 135 (cento e trinta e cinco) quilos para os inflamáveis gasosos liquefeitos. No tocante aos tanques de consumo próprio dos veículos, o subitem 16.6. 1. da própria Norma Regulamentadora estipulou uma exceção, ao esclarecer que as quantidades de inflamáveis neles contidas não devem ser consideradas para efeito de reconhecimento do labor em condições perigosas, independentemente da capacidade dos tanques. Tal limitação foi inserida originariamente na Portaria nº 608, de 26.10.1965 e restou mantida mesmo após a revisão da NR-16, em 1978. Percebe-se, pois, que a intenção da norma de excluir o tanque de consumo próprio se deu justamente porque este não é destinado a armazenamento, nos moldes da regra do item 16.6 da aludida NR. A egrégia SBDI-1, desta Corte Superior, todavia, no julgamento do processo E-RR-50-74.2015.2015.5.04.0871, na sessão de julgamento de 18/10/2018, ao interpretar os itens 16.6 e 16.6.1 da Norma Regulamentadora nº 16 do MTE, firmou entendimento no sentido de que considera-se devido o adicional de periculosidade ao empregado motorista que conduz veículo com tanque suplementar de combustível, mesmo que para consumo próprio, em quantidade superior a 200 litros. Considerou-se, de tal sorte, irrelevante o fato de o armazenamento do combustível ser feito em tanques originais de fábrica, suplementares ou alterados para aumentar a capacidade do tanque original, porquanto o que possibilitaria o risco equiparado ao que decorre da operação de transporte de inflamável seria a capacidade total dos tanques, se superior a 200 litros. Em tais casos, contudo, a norma regulamentadora é expressa quando afasta a possibilidade de reconhecimento do labor em condições perigosas. Tanto é que posteriormente ao aludido julgamento proclamado pela SBDI-1, a NR nº 16 foi alterada pela Portaria SEPRT nº 1.357/2019, que inseriu o subitem 16.6. 1. 1., para afastar a aplicação do item 16.6 às quantidades de inflamáveis contidas nos tanques de combustível originais de fábrica e suplementares, certificados pelo órgão competente. O referido subitem, ao excluir a incidência do item 16.6., excepcionou a regra geral para a classificação da operação como perigosa, erradicando, de tal forma, a possibilidade de alteração clandestina da capacidade dos tanques. Isso porque o subitem em questão versou especificamente sobre o requisito de os tanques de combustível voltados ao consumo próprio dos veículos serem originais de fábrica e suplementares, certificados pelo órgão competente, para que se pudesse refutar a periculosidade da condição da operação. Sobreleva notar, por oportuno, que a entrada em vigência do novo subitem não configurou a criação de uma nova situação jurídica, porquanto, conforme antes registrado o item 16.6. 1. já previa que as quantidades de inflamáveis contidas nos tanques suplementares para o consumo próprio não ensejariam o pagamento do adicional de periculosidade por transporte de inflamáveis. Depreende-se, pois, que o novo subitem (16.6. 1.1) veio acrescentar uma interpretação mais detalhada a fim de sanar eventuais lacunas acerca da abrangência da norma, notadamente no tocante aos tanques originais de fábrica e suplementares os quais afastam a condição perigosa a ensejar o pagamento do adicional de periculosidade. No caso em análise, o egrégio Tribunal Regional registrou que o reclamante conduzia caminhão equipado com tanques de combustível originais de fábrica e suplementares (de consumo próprio de veículos transportadores), certificados por órgão competente. Decidiu, diante desse cenário, manter a condenação da reclamada ao pagamento do adicional de periculosidade apenas no período de 04.12.2017 a 10.12.2019, por entender que a partir da entrada em vigor da Portaria SEPRT nº 1.357/2019, o adicional não seria mais devido. Ressaltou, nesse aspecto, que a referida alteração legislativa não poderia retroagir para alcançar fatos anteriores. Sucede, todavia, que como exaustivamente explicitado nas razões acima, não se está a tratar de direito que deixou de existir somente após a inserção do novo subitem 16.6. 1.1, mas de ausência de direito desde a redação original da NR16, aprovada pela Portaria nº 3.214/1978, sendo certo que o novo subitem veio apenas a aclarar ainda mais a situação que já se encontrava regulamentada. Assim, tendo em vista o disposto no artigo 193 da CLT que exige que, para que sejam consideradas perigosas, as operações devem estar previstas na regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho e Emprego e uma vez que a condição a que está submetido o reclamante nunca esteve enquadrada na Norma Regulamentadora nº 16 do MTE, é forçoso reconhecer que o egrégio Tribunal Regional do Trabalho proferiu decisão ao arrepio do princípio da legalidade, insculpido no artigo 5º, II, da Constituição Federal. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento. (TST; RR 0000804-11.2021.5.07.0034; Oitava Turma; Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos; DEJT 02/02/2024; Pág. 1440). Exclusividade Magister Net: Repositório autorizado On-Line do STF nº 41/2009, do STJ nº 67/2008 e do TST nº 35/2009. (Negritado).

Esse entendimento, porém, não é unânime no TST, existindo outras turmas, como a 3ª Turma do TST, que ainda persistem com o entendimento de que existe periculosidade porque haveria transporte de inflamável:

86000328 – AGRAVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. LEIS NOS 13.015/2014 E 13.467/2017. ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. MOTORISTA DE CAMINHÃO. CONDUÇÃO DE VEÍCULO COM TANQUE SUPLEMENTAR. CAPACIDADE TOTAL SUPERIOR A 200 LITROS. AUSÊNCIA DE TRANSCENDÊNCIA. A parte agravante não demonstra o desacerto da decisão monocrática que negou seguimento ao agravo de instrumento, uma vez que a jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que o motorista de caminhão equipado com tanques de combustível com capacidade total superior a 200 litros, ainda que originais de fábrica e mesmo que para consumo próprio, tem direito ao adicional de periculosidade, por equiparação a transporte de líquido inflamável. Precedentes. Agravo a que se nega provimento. (TST; Ag-AIRR 0001395-55.2016.5.05.0631; Terceira Turma; Rel. Min. Alberto Bastos Balazeiro; DEJT 18/12/2023; Pág. 1977). Exclusividade Magister Net: Repositório autorizado On-Line do STF nº 41/2009, do STJ nº 67/2008 e do TST nº 35/2009. (Negritado).

Assim, resta evidente que a matéria precisa ser discutida pelas diferentes Turmas do TST para ser gerado um consenso sobre a questão a fim de uniformizar a jurisprudência e conferir segurança jurídica à sociedade brasileira. Trata-se de medida urgente a ser tomada até para que as diversas empresas, como do ramo de transporte de cargas, que têm sido condenadas injustamente a pagar adicional de periculosidade, quando já existia norma jurídica determinando a inexistência de periculosidade, deixem de ser condenadas a pagar o que não devem por lei, sob pena de persistir a violação à Constituição, ao princípio da legalidade.

E se o TST vier a manter o entendimento de que existe transporte de inflamável e que, com isso, existe direito dos empregados ao adicional de periculosidade, teremos um conflito entre os poderes Legislativo e Judiciário, algo não raro nos últimos anos, em que são promovidas leis, e o Judiciário, em oposição, promove o chamado backlash, fenômeno este que pode ser traduzido como um rebote, em que um movimento posterior é oposto diametralmente ao movimento anterior, há muito denunciado por Lênio Streck (https://www.conjur.com.br/2022-jan-06/senso-incomum-backlash-hermeneutico-brasileira-la-carte/; acesso em 19/01/2024). E o risco de um backlash é colocar em risco a própria noção de inconstitucionalidade de uma lei, de legitimidade de uma decisão judicial e de autoridade da Justiça do Trabalho.


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