Para motoristas profissionais covid-19 é doença ocupacional?

Homem dirigindo carro trabalhando como motorista de aplicativo

O ano de 2020 foi marcado – e bem provável que o ano de 2021 também seja – pela pandemia da Covid-19 e pelos seus efeitos sem precedentes na atividade econômica, na operação das empresas e na rotina dos consumidores.

Diversas mudanças tiveram que ser implementadas em todas as áreas, desde a operacional, que é aquela que envolve a forma de organização do trabalho e da rotina para a prestação do serviço; bem como a forma de tratamento com o cliente, afinal, as exigências tornaram-se bem maiores diante dos novos riscos. Para o setor de transporte, não foi diferente.

O Decreto nº 10.282 de 20 de março de 2020[1] definiu os serviços públicos e as atividades essenciais, dispondo que, dentre estas, estão o trânsito e transporte interestadual e internacional de passageiros; serviços de transporte, armazenamento, entrega e logística de cargas em geral; transporte de insumos e produtos químicos, petroquímicos e plásticos em geral e transporte e distribuição de gás natural.

Art. 3º (…)

§ 1º São serviços públicos e atividades essenciais aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como:

(…)

V – trânsito e transporte interestadual e internacional de passageiros; 

(…)

XXII – serviços detransporte, armazenamento, entrega e logísticade cargas em geral;  

(…)

XLVIII – atividades de produção, exportação, importação e transporte de insumos e produtos químicos, petroquímicos e plásticos em geral;  

(…)

LII – produção, transporte e distribuição de gás natural; 

(…)

Dispôs que as atividades que dão suporte a estas atividades, como borracharias, oficinas mecânicas, postos de combustíveis, etc, também são consideradas essenciais e proibiu a realização de qualquer ato que vise restringir a circulação de trabalhadores que possam afetar essas atividades essenciais, principalmente a de cargas, e que possam gerar o desabastecimento de gêneros necessários à população.

§ 2º Também são consideradas essenciais as atividades acessórias, de suporte e a disponibilização dos insumos necessários a cadeia produtiva relativa ao exercício e ao funcionamento dos serviços públicos e das atividades essenciais.

§3º É vedada a restrição à circulação de trabalhadores que possa afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, e de cargas de qualquer espécie que possam acarretar desabastecimento de gêneros necessários à população.

Determinou também que deveriam ser adotadas todas as cautelas para redução de transmissibilidade da doença: “§ 7º Na execução dos serviços públicos e das atividades essenciais de que trata este artigo devem ser adotadas todas as cautelas para redução da transmissibilidade da covid -19.”

Verifica-se, deste modo, que os motoristas profissionais, que são aqueles que conduzem veículos automotores cuja condução exija formação profissional e que exerce atividade de transporte rodoviário de passageiros ou de cargas[2], se encontram na linha de frente desde o início da pandemia, consequentemente, em maior vulnerabilidade de contaminação pelo coronavírus.

O Supremo Tribunal Federal (STF), em 29/04/2020[3], suspendeu a validade do artigo 29 da extinta Medida Provisória nº 927, que considerava que o coronavírus não era doença ocupacional, imputando ao empregador o ônus de comprovar que tomou todas as medidas necessárias para evitar o contágio no meio ambiente do trabalho. Na oportunidade, esclareceu que em determinadas atividades, o risco de contaminação é maior, a exemplo do que ocorre nas atividades definidas em lei como essenciais, sendo que nestes casos é possível se presumir que a contaminação decorreu do ambiente laboral, com base na responsabilidade objetiva do empregador.

Tendo em vista que o Ministro Marco Aurélio proferiu decisão declarando a perda do objeto, após o encerramento da MP 927/2020, o assunto encontra previsto e regulamentado nos artigos 20, parágrafo 1°, alínea “d” e artigo 21, inciso III da Lei 8.213/1991:

Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:

(…)

d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.

Art. 21. Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta Lei:

(…)

III – a doença proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade;

Incumbe ressaltar, que o STF no julgamento do RE 828.040 declarou como constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidente do trabalho, naqueles casos previstos em lei ou ainda, naqueles casos em que seja apresentada exposição habitual a risco especial com potencialidade lesiva, conforme tese jurídica abaixo:

O artigo 927, parágrafo único, do Código Civil é compatível com o artigo 7º, XXVIII, da Constituição Federal, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê capítulo específico sobre a segurança e medicina do trabalho (Capítulo V, artigos 154 e seguintes), onde inclui a responsabilidade do empregador em cumprir e fazer cumprir referidas normas, bem como instruir os empregados, através de ordens de serviço quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais.

A Portaria Conjunta SEPRT/MS n° 20/2020[4] estabeleceu medidas a serem observadas visando à prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão de COVID-19 nos ambientes do trabalho, dentre elas estabeleceu a obrigatoriedade de divulgação de orientações ou protocolos com indicações das medidas necessárias; obrigatoriedade no fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs); distanciamento social; promoção de limpeza e desinfeção dos locais de trabalho e áreas comuns; aumento de ventilação natural; dentre outros. Especificamente quanto aos motoristas há a seguinte previsão: “10.7 Os motoristas devem higienizar frequentemente as mãos e o seu posto de trabalho, inclusive o volante e superfícies mais frequentemente tocadas.”

Sabe-se que os motoristas profissionais possuem inúmeras particularidades, afinal muitos passam a maior parte de sua jornada de trabalho e também períodos de descanso percorrendo rodovias em todo o País, o que os expõem às diversas variantes do coronavírus; com relação à saúde e segurança do trabalho, dependem tanto dos próprios cuidados pessoais, quanto de orientações e precauções dos empregadores, mas principalmente, dependem dos cuidados dos locais onde realizam carga/descarga; embarque/desembarque de passageiros; abastecimentos, refeições, higiene e todas as outras atividades ligadas à profissão.

Diferente das atividades essenciais com locais fixos, onde é possível ao empregador implementar diversas medidas e fazer com que os colaboradores que ali estão cumpram referidas determinações, sob pena até mesmo de punições, nas atividades relacionadas aos motoristas isso torna-se inviável, até mesmo pela razão do envolvimento de terceiros alheios à relação empregatícia.

Referidas explanações denotam que os motoristas profissionais apresentam exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implica ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade, o que leva a conclusão de que nestes casos deve ser aplicada a responsabilidade objetiva do empregador em casos de COVID-19.

No que tange à emissão de CAT, incumbe mencionar a Nota Técnica SEI nº 14127/2021/ME, a qual prevê que o médico do trabalho não deve se basear apenas no diagnóstico de COVID-19 para solicitar a emissão da CAT, devendo considerar ainda o estudo do local de trabalho e da organização do trabalho, os dados epidemiológicos e a literatura científica[5].

Pelo exposto, tendo em vista que a atividade de motorista profissional é essencial e em razão de suas particularidades que os colocam em risco acentuado em relação aos demais membros da coletividade e outras atividades, conclui-se que há sim esta presunção.


[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10282.htm

[2] Lei 13.105/2015 – Art. 1º É livre o exercício da profissão de motorista profissional, atendidas as condições e qualificações profissionais estabelecidas nesta Lei. Parágrafo único. Integram a categoria profissional de que trata esta Lei os motoristas de veículos automotores cuja condução exija formação profissional e que exerçam a profissão nas seguintes atividades ou categorias econômicas: I – de transporte rodoviário de passageiros; II – de transporte rodoviário de cargas.

[3] (Vide ADI nº 6342)       (Vide ADI nº 6344)       (Vide ADI nº 6346)       (Vide ADI nº 6352)          (Vide ADI nº 6354)       (Vide ADI nº 6375)       (Vide ADI nº 6380)

[4] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-conjunta-n-20-de-18-de-junho-de-2020-262408085

[5] 39. A emissão de Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT) deve ser solicitada à organização pelo médico do trabalho quando este confirmar ou suspeitar que a COVID-19 de um trabalhador está relacionada ao seu trabalho, levando em consideração os art. 2º e 3º e respectivos incisos da Resolução supracitada. Destaca-se que o referido art. 2º proíbe que o médico do trabalho conclua sobre o caso analisado sem considerar, entre outros fatores, o estudo do local de trabalho e da organização do trabalho, os dados epidemiológicos e a literatura científica

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