Trabalho doméstico escravo: da origem aos dias atuais

Homem amarrado à cadeira.

RESUMO

O presente artigo tem o objetivo de pesquisar a evolução histórica do trabalho doméstico desde a colonização até os dias atuais. Aborda seus avanços sociais, legais e remuneratórios, demonstrando a dificuldade de reconhecimento da profissão e de direitos trabalhistas. Aborda ainda a temática do trabalho doméstico escravo e das condições análogas a de escravo em que as trabalhadoras domésticas são submetidas até os dias de hoje. Por fim, aborda a legislação brasileira que visa combater o trabalho escravo no país. Para tal desiderato, será adotado o método dedutivo e qualitativo, por meio de pesquisas doutrinárias, artigos científicos e legislação, objetivando trazer à lume reflexões do assunto, tendo como mote o trabalho doméstico escravo.

PALAVRAS-CHAVE: Trabalho doméstico. Trabalho escravo. Avanços sociais. Escravidão doméstica.

INTRODUÇÃO

Para o desenvolvimento do presente artigo foi utilizado o método dedutivo e qualitativo para demonstração da evolução do trabalho doméstico no Brasil, apresentando os avanços legais e sociais alcançados pela categoria dos trabalhadores domésticos, haja vista, ainda encontrarmos resquícios da escravidão do trabalho doméstico. 

O artigo apresenta a evolução histórica do trabalho doméstico no país. Expõe como o trabalho doméstico ocorreu na época da colonização e escravidão e como evoluiu com o fim desta. Em 1886, foi editado o Código de Posturas do município de São Paulo, um dos primeiros documentos que previa o trabalho doméstico como trabalho remunerado. Continuamente, discorre sobre os principais marcos legais que versam sobre o trabalho doméstico até a edição da Lei Complementar 150/2015, lei pátria mais recente sobre a categoria profissional em estudo.

A pesquisa utiliza ainda o método quantitativo para expor os avanços remuneratórios das empregadas domésticas, estabelecendo para fins de estudo os marcos dos anos de 2011, 2015 e 2020, com apresentação de gráficos e estatísticas sobre a remuneração das empregadas domésticas nas principais regiões metropolitanas do país.

Por fim, através do método qualitativo, discorre sobre o trabalho doméstico em condições análogas a de escravo no Brasil e aponta a existência de resquícios de escravidão do trabalho doméstico e a luta do Brasil e da comunidade internacional para coibir essa prática.

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRABALHO DOMÉSTICO

2.1 ORIGEM E EVOLUÇÃO DO TRABALHO DOMÉSTICO

O trabalho doméstico pode ser não remunerado, quando os membros da família realizam as tarefas do lar ou, remunerados, quando realizado mediante uma relação de emprego em que há pagamento de um salário ao trabalhador. (BARROS, 2013) Mas, nem sempre foi assim.

Esta modalidade de trabalho está presente na sociedade mundial desde a antiguidade. Apesar de a maior parte da mão de obra ser feminina, também há espaço para os homens realizarem trabalho doméstico remunerado. No Brasil, o trabalho doméstico se iniciou na colonização do país, quando só havia imigrantes e nativos. Nessa época os colonizadores se utilizavam da mão de obra escrava indígena para a construção de infraestrutura, onde posteriormente passariam a ter suas casas. (YOSHIKAI , 2009).

Em meados do século XVI, com a atividade açucareira, houve a necessidade de mais mão de obra escrava, ocasião em que houve a chegada dos escravos africanos. No período Imperial, marcado pela vinda da família Real ao Brasil, restou deflagrada a segregação entre os escravos da senzala e os escravos domésticos. As escravas domésticas nesta época receberam o nome de mucamas e possuíam livre acesso à Casa Grande. Essas escravas estavam sob a proteção de seus senhores, recebiam um tratamento mais ameno em relação aos escravos da senzala, se vestiam de maneira diferenciada e eram escolhidas por sua aparência. (YOSHIKAI, 2009).

No Brasil, o fim do trabalho doméstico escravo ocorreu de maneira lenta e gradual para não causar prejuízos econômicos aos senhores de escravos, sendo acompanhado por políticas rígidas e repressivas de controle dos alforriados (DIEESE, 2020).

No ano de 1886 o trabalho doméstico passou a ser remunerado na cidade de São Paulo/SP, após a edição do Código de Posturas do Município de São Paulo. A partir deste momento, a cada período histórico, os trabalhadores domésticos foram conquistando direitos e reconhecimento na sociedade, sendo a mais recente a edição da Lei Complementar 150/2015, conforme será abordado no próximo tópico.

Atualmente, 92% dos trabalhadores domésticos no Brasil são mulheres, número superior à proporção de 80% no mundo e 88% na América Latina e no Caribe. Os homens, mesmo que sendo a grande minoria, ocupam cargos domésticos como os de motoristas e jardineiros, por exemplo (OIT, s.d.).

Como se percebe, a maior parte dos trabalhadores domésticos no Brasil são mulheres, o que encontra resquícios na história do país. Conforme será demonstrado neste trabalho, as empregadas domésticas nunca desistiram de obter o reconhecimento da profissão e seus direitos garantidos como trabalhadoras, sempre lutando para obter o reconhecimento social e jurídico de sua categoria.

2.2 AVANÇOS SOCIAIS E LEGAIS DO TRABALHO DOMÉSTICO

Em 1886 foi editado o Código de Posturas do Município de São Paulo, o qual estabelecia regras para criados e amas de leite. Em ambos os casos, dentre outros previstos em lei como serviço doméstico, havia a necessidade de registro junto à Secretaria de Polícia e, competia a esta, a emissão de uma caderneta de identidade do trabalhador. Neste Código, havia a previsão do serviço doméstico remunerado, aviso prévio na rescisão contratual de 5 dias pelo empregador e de 8 dias pelo empregado. Havia também a previsão de possibilidade de demissão por justa causa. Com a abolição da escravatura em 13 de maio de 1888, começaram a surgir as empregadas domésticas brancas para exercer a atividade de empregada doméstica (SÃO PAULO, 1886).

Com a entrada em vigor do Código Civil em 1916 houve a legitimação do trabalho mediante remuneração, inclusive do trabalho doméstico, conforme previsão estabelecida na Seção II – Da Locação de Serviços (BRASIL, 1916). Em 1923, foi editado o decreto 16.107 que dispunha especificamente sobre a locação de serviços domésticos. O artigo 2º do referido decreto estabelece o rol das ocupações que eram consideradas como serviço doméstico:

Art. 2º São locadores de serviços domésticos: os cozinheiros e ajudantes, copeiros, arrumadores, lavadeiras, engomadeiras, jardineiros, hortelões, porteiros ou serventes, enceradores, amas secas ou de leite, costureiras, damas de companhia e, de um modo geral, todos quantos se empregam, á soldada, em quaisquer outros serviços de natureza idêntica, em hotéis, restaurantes ou casas de pasto, pensões, bares, escritórios ou consultórios e casas particulares (BRASIL, 1923).

Em 1941, Getúlio Vargas, por meio do Decreto Lei 3.078/1941, regulamenta o trabalho doméstico. O artigo 1º do referido decreto dispõe que “são considerados empregados domésticos todos aqueles que, de qualquer profissão ou mister, mediante remuneração, prestem serviços em residências particulares ou a benefício destas.”Prevê regras de contratação e deveres e obrigações do patrão e empregado. Em 1960, com a edição da Lei Orgânica da Previdência Social houve a permissão dos empregados domésticos se inscreverem na Previdência Social.

Em 1972, foi promulgada a Lei 5.859, que dispõe sobre a profissão de empregada doméstica, definindo em seu artigo 1º a função de empregado doméstico como sendo “aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas, aplica-se o disposto nesta lei.”Na mencionada Lei há a previsão de direitos aos trabalhadores ao gozo de 20 dias de férias remuneradas por ano e recolhimento previdenciário (BRASIL, 1972).

Em 1973, foi editado o Decreto Lei 71.885 que aprovou o regulamento da lei 5.859/72 e dispunha outras providências. Em seu artigo 2º estabelecia que não se aplicava aos trabalhadores domésticos o disposto na Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto Lei 5.452/43), exceto o capítulo referente às férias (capítulo IV) (BRASIL, 1973).

Com o advento da Constituição de Federal de 1988, os empregados domésticos passaram a ter direito aos direitos básicos de qualquer trabalhador, como o recebimento do valor do salário-mínimo, 13º salário, repouso semanal remunerado, férias, licença maternidade, aviso prévio e aposentadoria. A lei mais recente sobre o assunto é a Lei Complementar 150/2015 acrescentou à esta esfera de trabalhadores o direito à jornada de trabalho de 44 horas semanais, pagamento de horas extras, adicional noturno e o Simples Doméstico, que se trata de um regime unificado de pagamento de tributos, contribuições e encargos dos empregados domésticos.

Há décadas o trabalhador doméstico busca por reconhecimento de sua profissão, sendo que somente no ano de 2015 conseguiu obter direito à limitação da jornada, recebimento de horas extras e adicional noturno, direitos estes já conquistados por quaisquer outros trabalhadores desde a edição da CLT em 1943, o que demonstra que ainda há um longo caminho a ser percorrido para o reconhecimento social e equiparação de direitos do trabalhado doméstico às demais categorias profissionais.

2.3 AVANÇOS REMUNERATÓRIOS DO TRABALHO DOMÉSTICO

Uma característica da categoria dos empregados domésticos é a baixa remuneração. Este fato pode ser relacionado com a histórica desvalorização deste tipo de trabalho associada à alta informalidade. Outro fator que contribui para a baixa remuneração é o fato de que muitos trabalhadores domésticos, em especial as mulheres, são contratadas para executar jornada diária (DIEESE, 2020).

Para delimitar o estudo da remuneração do trabalho doméstico, será estabelece o marco temporal de 2011, 2015 e 2020 e apresentará estatísticas das principais regiões metropolitanas do país no que se refere ao trabalho por mulheres.

Em 2012, o maior rendimento médio por hora do empregado doméstico diarista na região do Distrito Federal, era de R$ 5,91 e o mais baixo na região de Recife, R$ 3,08. Já os empregos domésticos mensalistas, possuem maior rendimento na região de São Paulo, com R$ 4,33 reais a hora e menor rendimento nas regiões metropolitanas de Fortaleza e Recife, R$ 2,21:

De acordo com dados coletados em 2011 em relação às horas semanais trabalhadas, nota-se que a região de Recife é a que possui maior número, totalizando 44 horas semanais e São Paulo a que possui o menor número totalizando 35 horas:

Assim, tem-se que o salário médio de uma diarista, local mais bem remunerado de acordo com a pesquisa, conseguia obter uma remuneração de R$ 898,32. Por outro lado, as diaristas da região de Recife, conseguiam obter uma remuneração de R$ 668,80. As mensalistas, na região de São Paulo, que é a mais bem remunerada do país conseguem uma remuneração média de R$ 640,84 e nas regiões de Recife e Fortaleza recebem, respectivamente, em média R$ 388,96 e R$ 362,44. O salário-mínimo nacional no ano de 2011 era de R$ 545,00. Deste modo, a remuneração nas regiões de Recife e Fortaleza ficaram abaixo do salário-mínimo nacional (IPEA, 2021).

De 2011 a 2015, nota-se uma crescente no aumento no salário hora dos empregados domésticos. A região que teve maior aumento médio foi a de Fortaleza, com variação de 27,7%:

No gráfico nota-se que a maior remuneração de diaristas é na região de São Paulo, com valor de R$ 10,00 a hora, e a menor é na região de Salvador, com valor de R$ 6,06. Para as mensalistas com carteira assinada, a maior remuneração também é na região de São Paulo, R$ 7,59 a hora e a menor na região de Fortaleza, R$ 4,60 a hora. As trabalhadoras informais, segundo a pesquisa, aparecem nas regiões de Fortaleza e Salvador e possuem uma remuneração inferior às demais categorias.

A média de horas trabalhadas por semana, de acordo com o gráfico abaixo a categoria de mensalistas com carteira assinada possui maior jornada semana na região de Fortaleza, com 46 horas e a menor jornada semanal na região de São Paulo, com 40 horas semanais. Já as diaristas, possuem maior jornada semanal na região de Porto Alegre, com 26 horas e em Salvador com 24 horas:

Deste modo, em 2015, a trabalhadora diarista na região de São Paulo, considerada a região que melhor remunera, consegue obter uma remuneração mensal média de R$ 690,00 e no local com menor remuneração por hora (Salvador), a diarista consegue remuneração de R$ 484,80. As empregadas domésticas com carteira assinada, no local que melhor remunera a hora (Região metropolitana de São Paulo) conseguem obter uma remuneração mensal média de R$ 4.214,40 e na região que possui a menor remuneração por hora (Fortaleza), as trabalhadoras domésticas conseguem remuneração média no valor de R$ 846,40. O salário-mínimo em 2015 era de R$ 788,00, sendo que de acordo com a pesquisa, as diaristas recebiam valor inferior ao valor do salário mínimo, mesmo na região que melhor remunerava no país.

No ano de 2020, a pesquisa apresenta a média salarial por regiões do país, e nota-se uma queda no valor do rendimento médio nacional, exceto na região Norte:

Em 2020 a região que melhor remunerou a empregada doméstica foi a região Sul (R$ 1.063,00 mensais) e a que pior remunerou foi a região Nordeste (R$ 589,00). O valor do salário-mínimo nacional era de R$ 1.045,00, sendo que apenas a região Sul ficou acima do salário-mínimo vigente.

Enquanto a remuneração diminuiu, as horas trabalhadas aumentaram em relação aos anos do objeto deste estudo (2011 e 2015), sendo que a região que computou maior jornada semanal foi a região Sudeste, com 44 horas e que de menor jornada semanal foram as Norte e Centro-Oeste, com 50 horas semanais.

A maioria dos estados brasileiros segue o valor do salário-mínimo estabelecido pelo Governo Federal, entretanto, alguns deles adotam piso regional superior ao nacional, como é o caso do estado de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul[1].

Não se verifica ainda um cenário ideal remuneratório dos empregados domésticos, embora se vislumbre perspectivas de melhora nos estados em que o piso é superior ao mínimo estabelecido pelo Governo Federal.

3 TRABALHO DOMÉSTICO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS A DE ESCRAVO NO BRASIL

3.1 A ESCRAVIDÃO NO TRABALHO DOMÉSTICO

Mesmo com os evidentes avanços legislativos e por consequência lógica os avanços em termos de remuneração, ainda se verifica que, mesmo após o final do período da escravidão, permanece estilhaços de casos de trabalho forçado ou em condições análogas ao escravo em âmbito doméstico e familiar.

Fazendo uma breve digressão no tempo, no regime de escravidão formal (antes da abolição da escravatura), havia castigos físicos pelo descumprimento de obrigações, insubordinação e tentativas de fuga.

Sobre as violências vividas pelas escravas e os meios utilizados pelos senhores para reprimir as transgressões, Maria Cristina Wissenbach (1998, p. 24) afirmou que “utilizavam-se de meios variados que iam da prisão domiciliar – atando as domésticas com cordas nas mesas e cadeiras, como foi feito com a escrava Hipólita – ou – recursos sempre disponíveis – enviando-as ao resguardo das propriedades rurais ou vendendo as insubordinadas”.

A escrava Hipólita recebia serenatas de amor de um ex combatente da guerra do Paraguai, que costumava adentrar pela janela da casa dos senhores para visitá-la as escondidas. Sua senhora, como forma de puni-la, confiscou lhe um preciso retrato.

Em 1867, antes de fugir com seu amante, o alferes Montenegro, abandonando todos os seus demais bens, suas saias de bico e xales, as últimas palavras ditas por Hipólita foram transmitidas a seus parceiros Marcolina, Inocência e ao forro Manuel Pinto e testemunhadas nos autos pelo Dr. Martinho Prado Jr., advogado de 24 anos: “[…] por que Hipólita dizia não se poder conformar com o achado do retrato, dizendo que tudo podia aturar menos que ficassem com o retrato” (WISSENBACH , 1998, p. 225).

Na contramão dos avanços sociais, a história do trabalho doméstico no Brasil no pós abolição mantinha de um lado a elite latifundiária, exercendo o poderio econômico e de outro homens e mulheres recém libertos ou libertos a algum tempo sem que tivessem perspectiva de inserir-se no mercado qualificado de trabalho. Tratando aqui das mulheres, o trabalho doméstico restou como alternativa para essas pessoas que por vezes trabalhavam em troca de casa e comida, outras estabeleciam prestações de serviços no modelo diarista ou mensal, pautadas na informalidade e em relações de favor. Era constituído das mais variadas atividades – lavadeiras, cozinheiras, amas de leite, mucamas, babás etc.

Para Sandra Graham, […] o âmbito do trabalho doméstico inclui, em um extremo, as mucamas, as amas-de-leite e, no outro, as carregadoras de água ocasionais, as lavadeiras e costureiras. Até mesmo as mulheres que vendiam frutas, verduras ou doces na rua eram geralmente escravas que, com frequência, desdobravam-se também em criadas da casa durante parte do dia. A meio caminho estavam as cozinheiras, copeiras e arrumadeiras. O que as distinguia não era apenas o valor aparente de seu trabalho para o bem-estar da família, refletindo no contato diário que cada um tinha com os membros desta, mas também o grau de supervisão. […] (GRAHAM , 1992, p. 18).

Algumas dessas empregadas desenvolvem sentimento de gratidão pela oportunidade de ter trabalho. Vejamos depoimento retirado de uma notícia do Tribunal Superior do Trabalho:

Maria Teotônia Ramos da Silva, aposentada após 60 de trabalho doméstico, relata sua experiência de começar a trabalhar aos 11 anos na casa de uma família abastada de São Luís (MA). Ela não tem dúvida em dizer que foi “uma coisa muita boa”.

Eu sempre quis ter minhas coisas, um sapato, um vestidinho”, responde justificando o precoce início na vida profissional. Dona Teotônia garante que aprendeu muita coisa naquele lar em que trabalhou, e que sua vida seria muito mais difícil se não tivesse deixado a realidade “humilde da roça” no interior do município de Santa Rita (MA).

Embora não recebesse salário, conta que era bem tratada e que o trabalho na casa era leve, pois apenas ajudava no corte e costura de roupas para os filhos da patroa rica, dona de fábrica.

Mesmo com todos os elogios aos patrões, ela revela que nunca teve acesso à educação formal, como ocorreu com os filhos dos seus empregadores. Não permitiram que ela fosse para a escola com a promessa de que iriam contratar um professor para lhe ensinar em casa, o que nunca ocorreu. Isso, no entanto, não impediu que Teotônia aprendesse a ler, embora não saiba escrever muito bem. “Quem me ensinou foi Deus, porque eu leio a Bíblia” (FONTENELE , 2012, online).

Há 133 anos, o Brasil vivencia uma pseudo abolição da escravatura, e mesmo com avanços em políticas públicas e legislativa no combate a esse tipo de exploração e violência, o trabalho escravo segue atingindo as pessoas mais vulneráveis.

Segundo estudos realizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), nos últimos 25 anos, entre 1995 e final de 2020, quase 56 mil pessoas em situação análoga à escravidão foram libertadas em todo país. Em 2020, apesar das dificuldades da fiscalização em função da pandemia, foram identificados 112 casos de trabalho escravo no Brasil, que envolveram 1.390 pessoas e resultaram no resgate de 1.040 delas, inclusive as vítimas de escravidão doméstica (CPT, 2021, online).

A exemplo disso, cita-se o caso da trabalhadora Madalena Giordano que ainda criança foi morar na casa da professora Maria das Graças Milagres Rigueira. Em seguida, a professora decidiu cedê-la para seu filho Dalton César e sua esposa Valdirene. Madalena foi escravizada desde a infância, durante 38 anos pela família Milagres Rigueira, na cidade de Patos de Minas (MG). Segundo relato dos auditores fiscais do Ministério Público do Trabalho, que participaram da operação de resgate de Madalena, ela ficava em um quarto apertado, sem ventilação e janela, além de ser submetida a maus tratos e abandono.

Como parte do tratamento desumano, Madalena foi obrigada a se casar com um tio de Valdirene, ex combatente da Segunda Guerra Mundial. Desde 2003 ela tinha direito à pensão do falecido marido no valor de R$8.400,00, mas que quem recebia e ficava com praticamente todo dinheiro era a família que a escravizava. O caso ganhou notoriedade depois que ela passou a mandar bilhetes para os vizinhos pedindo pequenas quantias e produtos de higiene pessoal (MURARI, 2021, online).

A Central Única de Trabalhadores (CUT) divulgou notícia sobre o resgate envolvendo duas trabalhadoras domésticas em situação análoga à de escravo. As operações foram realizadas pela Ministério Público do Trabalho, Secretaria de Inspeção do Trabalho e pela Polícia Federal.

A primeira trabalhadora, que vivia em condição análoga à de escravo há cerca de 30 anos, foi resgatada em maio de 2021 na cidade de Anápolis (GO). A segunda empregada doméstica foi resgatada no mês de junho, na cidade de São José dos Campos (SP), vivendo nas mesmas condições da anterior, por 20 anos. Em ambos os casos, as empregadas eram privadas do convívio social, não recebiam salários, não tinham folgas ou férias (CUT, 2021, online).

No caso de São José dos Campos, os empregadores retiveram os documentos da empregada para evitar fuga e impediam-na da convivência social desde a adolescência. O pagamento do suposto salário era feito na conta da mãe da trabalhadora, com quem não tinha contato, logo, na prática, não recebia salário. Na mesma linha de comportamento, os patrões de Anápolis, além de não registrarem o contrato de trabalho e não realizarem o pagamento e nem conceder férias, diziam que a empregada “era como se fosse da família” (CUT, 2021, online).

O que se verifica é que independentemente do período da história em que se caminha, percebe-se que o trabalho forçado é um fenômeno global, histórico e dinâmico, que assume diversas formas, incluindo a servidão por dívidas, o tráfico de pessoas e outras formas de escravidão moderna.

As trabalhadoras acima citadas e muitas outras Madalenas e Marias são, em sua maioria, migrantes internas ou externas que deixaram suas casas para dirigirem-se a grandes centros urbanos em busca de novas oportunidades ou atraídas por falsas promessas, ou ainda resultante de tráfico de pessoas. Outras, foram aliciadas desde criança. A busca é quase sempre a mesma – condição de vida digna.

3.2 LEGISLAÇÃO BRASILEIRA DE COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO

A Constituição Federal de 1988, no art. 5º, XLVII (BRASIL, 1998), veda a pena de trabalhos forçados, desumano e degradante e no art. 243, com a redação dada pela EC 81/2014, prevê expropriação de caráter sancionatório de imóveis rurais e urbanos, em caso de constatação de trabalho escravo, sem prejuízo de outras sanções. Embora de grande avanço legislativo a redação dada pela EC 81/2014 ao art. 243, ainda padece da necessidade de aperfeiçoamento do conceito de trabalho escravo.

O Brasil ratificou a Convenção sobre Trabalho Forçado n. 29 da OIT, o art.2 – 1 traz a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” como todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade, admitindo em seu bojo, algumas exceções ao trabalho obrigatório, tais como o serviço militar, o trabalho penitenciário adequadamente supervisionado e o trabalho obrigatório em situações de emergência, como guerras, incêndios, terremotos, entre outros.

A Convenção sobre Abolição do Trabalho Forçado n.150, também ratificada pelo Brasil, trata da proibição do uso de toda forma de trabalho forçado ou obrigatório como meio de coerção ou de educação política; castigo por expressão de opiniões políticas ou ideológicas; medida disciplinar no trabalho, punição por participação em greves; como medida de discriminação

A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), no seu art. 6º, proíbe a prática da escravidão em todas as suas formas, determinando que ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório.

Em âmbito penal, a prática de reduzir alguém a condição análoga a de escravo é tipificada como crime, nos termos do art. 149 do Código Penal (BRASIL, 1940), com pena de reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência.

Além disso, o Código Penal também tipifica duas outras condutas como criminosas nos arts. 203 e 207. O primeiro incrimina a conduta de frustrar, mediante violência ou fraude, direito assegurado pela legislação do trabalho, cominando pena de detenção de um a dois anos, além de multa e da pena correspondente à violência. No segundo artigo, é tipificada a conduta de se aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los para outra localidade do território nacional, aqui a pena prevista é de detenção de um a três anos e multa.

A sanção da Lei Complementar 150 trouxe importante avanço na consolidação dos direitos dos trabalhadores domésticos. Ao contrário dos trabalhadores rurais e avulsos, a Constituição não havia equiparado os domésticos aos trabalhadores urbanos de forma significativa, o que somente veio ocorrer com a EC 72, que veio regulamentada pela LC 150/2015.

A classe de empregadas domésticas ainda é parcela considerável dos trabalhadores brasileiros. Segundo levantamento realizado pela OIT, em 2016, o Brasil tinha 6,158 milhões de trabalhadoras(es) domésticas(os), dos quais 92% eram mulheres; apenas 42% destas trabalhadoras contribuem para a previdência social e só 32% possuem carteira de trabalho assinada; em 2015, 88,7% das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) entre 10 e 17 anos no Brasil eram meninas e 71% eram negras(os). O número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil doméstico no Brasil teve uma diminuição de 61,6% entre 2004 e 2015, passando de 406 mil para 156 mil (OIT, 2016, online).

Mesmo diante dos avanços legislativos, já ressaltados durante o discorrer do presente artigo, ainda há muito o que melhorar não só em termos legislativos, mas também em fiscalização, combate e principalmente conscientização do que a subversão da condição de pessoa colocada em situação de escravidão ou vulnerabilidade de direitos é capaz de fazer com o ser humano.

CONCLUSÃO

O presente trabalho teve por escopo fazer uma abordagem geral (sem intuito de esgotar a temática) das trabalhadoras domésticas expostas a condição análogas a de escravo, antes e após a abolição da escravidão, com seus avanços e retrocessos sociais.

As trabalhadoras domésticas representam parcela significativa da mão-de-obra explorada e relegada a informalidade e a escravidão por vezes, silenciosa. Essas mulheres trabalham em casa de famílias sem termos claros de emprego, sem registro formal na carteira de trabalho e excluídas da legislação trabalhista.

Mulheres como Madalena Gordiano, não foram matriculadas na escola, são proibidas de falar com vizinhos, têm negada a sua socialização e realizam os trabalhos domésticos para a família em troca de mínimas condições para sobrevivência. Trabalham em jornadas extenuantes, privadas de alimentação adequada e do convívio social. Muitas, além das privações de alimento e seus próprios documentos, são violentadas física e psicologicamente por seus empregadores. A justificativa de que “fazem parte da família” é utilizada por anos para velar a exploração.

O combate ao trabalho escravo, seja no âmbito que for, e em especial o doméstico exige vigilância constante, coragem para se realizar a denúncia e mais ainda, coragem no enfrentamento do problema, como adoção de providencias emergenciais de atendimento à trabalhadora resgatada como abrigo emergencial, transporte, emissão das guias de Seguro-Desemprego, emissão de comunicação de acidente de trabalho quando cabível, encaminhamento para atendimento emergencial de saúde, providências para emissão de documentação civil, regularização migratória e eventual propositura de ação judicial.

Ações de fiscalização, engajamento social e incentivo governamental no combate à exploração do trabalho humano devem ser atreladas as políticas públicas de assistência social também no pós resgate, como inclusão social das pessoas resgatadas, encaminhamento ao local de origem ou onde estão seus familiares, assistência psicológica a programas de inserção no mercado de trabalho e de estudo.

REFERÊNCIAS

BARROS, Veronica Altef. Qualificação Profissional do Trabalhador Doméstico no Brasil: Análise na perspectiva do trabalho decente. 2013. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito – Universidade de São Paulo.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 13 set. 2021.

BRASIL. Decreto Lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 13 set. 2021.

BRASIL. Decreto Lei 71.885 de 9 de março de 1973. Aprova o regulamento da lei número 5.859, de dezembro de 1972, que dispõe sobre a profissão de empregado doméstico, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/decreto/1970-1979/D71885.htm>. Acesso em: 11 set. 2021.

BRASIL. Decreto Lei n 16.107 de 30 de jul. de 1923. Aprova o regulamento de locação dos serviços domésticos Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-16107-30-julho-1923-526605-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 11 set. 2021.

BRASIL. Lei n 5.859 de 11 de dez. de 1972. Dispõe sobre a profissão de empregado doméstico e dá outras providências. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-5859-11-dezembro-1972-358025-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 11 set. 2021.

BRASIL. Lei nº 3.071/1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil de 1º de janeiro de 1916. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm>. Acesso em: 11 set. 2021.

CPT. Em meio à covid, trabalho escravo pode se tornar uma epidemia?. Comissão Pastoral da Terra, maio de 2021. Disponível em: <https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/trabalho-escravo/5635-em-meio-a-covid-trabalho-escravo-pode-se-tornar-uma-epidemia>. Acesso em: 12 set. 2021.

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[1]  PR – Para 2021, segundo a Lei 20423 – 14 de dezembro de 2020, o valor foi reajustado em aproximadamente 4,65%. Ou seja, uma empregada doméstica que até então recebe o piso de R$ 1.436,60 pode passar a receber R$ 1.524,60, ou seja R$6,93 por hora;

RJ – Ainda não foi definido o piso estadual para 2021, vigorando o piso adotado em 2019, cujo valor é de R$ 1.238,11, ou seja R$ 6,62 por hora;

RS – Segue o valor do salário-mínimo fixado pelo decreto federal. O piso regional para 2021 foi congelado em votação na Assembleia Legislativa. Dessa forma, permanece o valor de R$ 1.237,15, fixando em R$5,62 o valor da hora;

SC – Desde janeiro de 2021, o valor do salário-mínimo fixado é de R$1.281,00, sendo R$5,82 por hora

SP – Ainda não foi definido o piso estadual para 2021. Vigora atualmente no estado o piso adotado em 2019 – R$ 1.163,55, ou seja R$5,28 por hora trabalhada;

Disponível em: <https://www.idomestica.com/tabelas/salario-empregada-domestica>. Acesso em 12 set. 2021.

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