O privilégio de matar mulher.

Mulher desconsolável chorando em foto em preto e branco
  1. FEMINICÍDIO: CRIME OU QUALIFICADORA?

“A impunidade tolerada pressupõe cumplicidade“. (Marquês de Maricá).

Ao contrário do que toda a imprensa divulga, feminicídio, tecnicamente, não é um crime, e sim uma das qualificadoras do crime de homicídio.

O Código Penal é muito claro:

Homicídio simples

Art. 121. Matar alguém:

Pena – reclusão, de seis a vinte anos.

Homicídio qualificado

  • 2.º Se o homicídio é cometido:

VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:

Pena – reclusão, de doze a trinta anos.

O feminicídio pode ser definido como uma qualificadora do crime de homicídio motivada pelo ódio contra as mulheres, caracterizado por circunstâncias específicas, nas quais o pertencimento da mulher ao sexo feminino é central na prática do delito. Entre essas circunstâncias, estão incluídos: os assassinatos em contexto de violência doméstica/familiar e o menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Os crimes que caracterizam a qualificadora do feminicídio reportam, no campo simbólico, à destruição da identidade da vítima e de sua condição de mulher.

2- UMA CONSTRUÇÃO DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL MAQUIAVÉLICA

A ONU Mulheres estima que, entre 2004 e 2009, 66 mil mulheres tenham sido assassinadas, por ano, simplesmente pelo fato de serem mulheres. No Brasil, entre 2000 e 2010, 43,7 mil foram assassinadas, das quais cerca de 41% foram mortas em suas próprias casas, muitas pelos companheiros ou ex-companheiros, com quem mantinham ou haviam mantido relações íntimas de afeto e confiança. Entre 1980 e 2010, o índice de assassinatos de mulheres dobrou no País, passando de 2,3 assassinatos por 100 mil mulheres para 4,6 assassinatos por 100 mil mulheres. Esse número coloca o Brasil na sétima colocação mundial em assassinatos de mulheres, figurando, assim, entre os países mais violentos do mundo nesse aspecto.[1]

A qualificadora do feminicídio foi criada com escopo de tentar punir com penas mais severas a crescente morte de mulheres motivadas por razões do gênero, porém, infelizmente, a nobre intenção do legislador ainda não obteve o efeito desejado.

Segundo fontes da imprensa, uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil.[2]

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) manifestou, por meio de nota, preocupação com a elevada incidência de assassinatos de mulheres no Brasil no início deste ano. Segundo a comissão, 126 mulheres foram mortas em razão de seu gênero no País desde o início do ano, além do registro de 67 tentativas de homicídio. [3]

No entanto, o pior ainda pode acontecer, pois ganha grande força uma construção doutrinária e jurisprudencial maquiavélica: o feminicídio privilegiado (Leia-se: o privilégio de matar mulher).

Entenda a seguir como essa diabólica tese começa a ser construída e pode tornar possível a cumulação do feminicídio com o privilégio.

3-FEMINICÍDIO: QUALIFICADORA SUBJETIVA VERSUS OBJETIVA e a nefasta construção da tese de FEMINICÍDIO PRIVILEGIADO. [4]

Ensina Alice Bianchini que: “As qualificadoras objetivas são as que dizem respeito ao crime, enquanto as subjetivas vinculam-se ao agente. Enquanto as objetivas dizem com as formas de execução (meios e modos), as subjetivas conectam-se com a motivação do crime”.

Cezar Bitencourt apresenta a seguinte classificação das qualificadoras do homicídio:

Objetivas = Meio e forma de execução.

Subjetivas = Motivos do crime.

DISSENSO DOUTRINÁRIO

No que tange à natureza da qualificadora do feminicídio, há grande controvérsia doutrinária.

1ª POSIÇÃO: ENTENDO QUE QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO É SUBJETIVA, NA MEDIDA EM QUE SE ENQUADRA NA MOTIVAÇÃO DO AGENTE. OU SEJA, É HOMICÍDIO COMETIDO POR ESTRITAS RAZÕES RELACIONADAS À CONDIÇÃO DE MULHER, NÃO HAVENDO LIGAÇÃO COM OS MEIOS OU MODOS DE EXECUÇÃO DO CRIME. [5]

A violência doméstica, familiar e também o menosprezo ou discriminação à condição de mulher, não são formas de execução do crime, e sim, a motivação delitiva; portanto, o feminicídio é uma qualificadora subjetiva.

Assim, são qualificadoras:

a) Subjetivas (Artigo 121, incisos I, II, V, VI e VII do CP)

I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;

II – por motivo fútil;

V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:

VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.

VII – funcional.

b) Objetivas (Artigo 121, incisos III e IV do CP) 

VI – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

VII – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;

No mesmo sentido é a posição de:

Cezar Roberto Bitencourt:

“[…] o próprio móvel do crime é o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher, mas é, igualmente, a vulnerabilidade da mulher tida, física e psicologicamente, como mais frágil, que encoraja a prática da violência por homens covardes, na presumível certeza de sua dificuldade em oferecer resistência ao agressor machista.”

Alice Bianchini:

“A qualificadora do feminicídio é nitidamente subjetiva. Uma hipótese: mulher usa minissaia. Por esse motivo fático o seu marido ou namorado a mata. E mata-a por uma motivação aberrante, a de presumir que a mulher deve se submeter ao seu gosto ou apreciação moral, como se dela ele tivesse posse, retificando-a, anulando-lhe opções estéticas ou morais, supondo que à mulher não é possível contrariar as vontades do homem. Em motivações equivalentes a essa há uma ofensa à condição de sexo feminino. O sujeito mata em razão da condição do sexo feminino, ou do feminino exercendo, a seu gosto, um modo de ser feminino. Em razão disso, ou seja, em decorrência unicamente disso. Seria uma qualificadora objetiva se dissesse respeito ao modo ou meio de execução do crime. A violência de gênero não é uma forma de execução do crime; é, sim, sua razão, seu motivo”.

Rogério Sanches Cunha[6]:

“Ressaltamos, por fim, que a qualificadora do feminicídio é subjetiva, pressupondo motivação especial: o homicídio deve ser cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. Mesmo no caso do inciso I do §2º-A, o fato de a conceituação de violência doméstica e familiar ser um dado objetivo, extraído da lei, não afasta a subjetividade. Isso porque o §2º-A é apenas explicativo; a qualificadora está verdadeiramente no inciso VI, que, ao estabelecer que o homicídio se qualifica quando cometido por razões da condição do sexo feminino, deixa evidente que isso ocorre pela motivação, não pelos meios de execução”.

É também a posição de Cleber Masson, Márcio André Lopes Cavalcante, Luiz Flávio Gomes, Ronaldo Batista Pinto, Eduardo Luiz Santos Cabette, etc.

CONCLUSÕES PRÁTICAS[7]

Sendo o feminicídio uma qualificadora subjetiva, haverá, impreterivelmente, duas consequências:

a) As qualificadoras subjetivas (Artigo 121, incisos I, II, V, VI e VII) não se comunicam aos demais coautores ou partícipe no concurso de pessoas. As qualificadoras objetivas (Artigo 121, incisos III e IV do CP) comunicam-se desde que ingressem na esfera de conhecimento dos envolvidos. 

b) Não é possível a qualificadora do feminicídio ser cumulada com o privilégio do artigo 121 § 1º do Código Penal. Ou seja, não existe feminicídio qualificado-privilegiado, isso porque doutrina e a jurisprudência dominante sempre admitiram, como regra, homicídio qualificado-privilegiado, estabelecendo uma condição; a qualificadora deve ser de natureza objetiva, pois o privilégio descrito nos núcleos típicos do artigo 121 § 1º, são todos subjetivos, algo que repele as qualificadoras da mesma natureza.

•   Posição do STF: “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido da possibilidade de homicídio privilegiado-qualificado, desde que não haja incompatibilidade entre as circunstâncias do caso.Noutro dizer, tratando-se de qualificadora de caráter objetivo (meios e modos de execução do crime), é possível o reconhecimento do privilégio (sempre de natureza subjetiva)” (HC 97.034/MG).

•   Posição do STJ: “Admite-se a figura do homicídio privilegiado-qualificado, sendo fundamental, no particular, a natureza das circunstâncias.Não há incompatibilidade entre circunstâncias subjetivas e objetivas, pelo que o motivo de relevante valor moral não constitui empeço a que incida a qualificadora da surpresa.” (RT 680/406).

c) As qualificadoras do feminicídio (natureza subjetiva) e as qualificadoras do motivo torpe e fútil (natureza subjetiva) não podem ser cumuladas, constituindo-se um verdadeiro bis in idem a possibilidade de cumulação, uma vez que o desprezível menosprezo à condição da mulher já é um motivo abjeto, repugnante, torpe.

2ª POSIÇÃO: PARA A SEGUNDA POSIÇÃO A QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO É OBJETIVA. [8]

Neste sentido:

Vicente de Paula Rodrigues Maggio. Para o autor, com o advento da Lei 13.104/2015, que incluiu mais uma qualificadora ao crime de homicídio, cinco passam a ser as espécies de qualificadoras: 1) pelos motivos (incisos I a II – paga, promessa ou outro motivo torpe, e pelo motivo fútil); 2) meio empregado (inciso III – veneno, fogo, explosivo, asfixia, etc.); 3) modo de execução (inciso IV – traição, emboscada, dissimulação, etc.), 4) por conexão (inciso V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime) e, a novidade, 5) pelo sexo da vítima (inciso VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino). Para Vicente Maggio as qualificadoras previstas nos incisos III, IV e VI são objetivas.

Paulo Busato – Para o autor, trata-se de “dado absolutamente objetivo, equivocadamente inserido em disposição que cuida de circunstâncias de natureza subjetiva. A partir dessas premissas, lança-se observação acerca do motivo imediato, que pode qualificar o crime se aderente às hipóteses do art. 121, § 2º, incisos I, II e V do Código Penal, quadro que não se confunde com a condição de fato, ou seja, com o contexto objetivo, caracterizador do cenário legal de violência de gênero.

É a posição das 1ª, 2ª e 3ª Turmas Criminais do TJDFT. (conferir: APR Processo: 20170410052055APR, 1ª Turma Criminal do TJDFT, Relator(a): J.J. COSTA CARVALHO. j. 20/09/2018, DJe 04/10/2018, RSE Processo: 20150310174699RSE, 2ª Turma Criminal do TJDFT, Relator (a): SILVANIO BARBOSA DOS SANTOS. j. 14/07/2016, DJe 22/07/2016, RSE Processo: 20150310228479RSE, 3ª Turma Criminal do TJDFT, Relator(a): WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR. j. 17/11/2016, DJe 25/11/2016).

Analisando julgados do STJ, Victor Eduardo Rios comenta: Há julgados no Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o feminicídio é qualificadora de caráter objetivo: “ Nos termos do art. 121, § 2º-A, I, do CP, é devida a incidência da qualificadora do feminicídio nos casos em que o delito é praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar, possuindo, portanto, natureza de ordem objetiva, o que dispensa a análise do animus do agente. Assim, não há que se falar em ocorrência de bis in idem no reconhecimento das qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio, porquanto, a primeira tem natureza subjetiva e a segunda objetiva ” (HC 433.898/RS — Rel. Min. Nefi Cordeiro — 6ª T. — j. em 24-4-2018, DJe 11-5-2018)[9].

E também o entendimento das 1ª, 2ª e 3ª Câmaras Criminais do TJMG:

As qualificadoras do feminicídio (natureza objetiva) e motivo torpe (natureza subjetiva) são distintas e autônomas, sendo possível o seu reconhecimento simultâneo, afastando-se, assim, o bis in idem. (Conferir: RSE nº 1.0396.18.002232-1/001, Relator(a): Des.(a) Alberto Deodato Neto, 1ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 19/02/0019, publicação da súmula em 27/02/2019), Embargos Infringentes e de Nulidade nº 1.0105.17.040812-1/002, Relator(a): Des.(a) Matheus Chaves Jardim, 2ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 07/02/2019, publicação da súmula em 18/02/2019, Apelação Criminal nº 1.0525.15.014813-4/002, Relator(a): Des.(a) Maria Luíza de Marilac, 3ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 11/09/2018, publicação da súmula em 21/09/2018).

Na mesma linha, vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça:

1. Hipótese em que a instância de origem decidiu pela inviabilidade da manutenção das qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio, sob pena de afronta ao princípio do non bis in idem quanto a um dos fatos, e, relativamente a outros dois fatos, afastou a adjetivadora do feminicídio, analisando aspectos subjetivos da motivação do crime. 2. Não há dúvidas acerca da natureza subjetiva da qualificadora do motivo torpe, ao passo que a natureza do feminicídio, por se ligar à condição especial da vítima, é objetiva, não havendo, assim, qualquer óbice à sua imputação simultânea. 3. É inviável o afastamento da qualificadora do feminicídio mediante a análise de aspectos subjetivos da motivação do crime, dada a natureza objetiva da referida qualificadora, ligada à condição de sexo feminino. 4. A exclusão das qualificadoras na fase de pronúncia somente é possível quando manifestamente improcedentes, pois a decisão acerca de sua caracterização deve ficar a cargo do Conselho de Sentença. 5. Recurso provido. (REsp 1739704/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 18/09/2018, DJe 26/09/2018)

1. Evidencia-se que a sedimentada orientação desta Corte é firme no sentido de que não é cabível sustentação oral no julgamento de agravo regimental, em observância, notadamente, aos arts. 159, IV, e 258, ambos do RISTJ. 2. Nos termos do art. 121, § 2º-A, II, do CP, é devida a incidência da qualificadora do feminicídio nos casos em que o delito é praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar, possuindo, portanto, natureza de ordem objetiva, o que dispensa a análise do animus do agente. Assim, não há se falar em ocorrência de bis in idem no reconhecimento das qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio, porquanto, a primeira tem natureza subjetiva e a segunda objetiva. 3. Agravo regimental improvido. (AgRg no HC 440945/MG, Min Nefi Cordeiro, Sexta turma, julgado em 05/06/2018)

CONCLUSÕES PRÁTICAS

a) Sendo a qualificadora de feminicídio de natureza objetiva, é possível coexistir com a qualificadora de motivo torpe ou fútil.

b) Para essa posição é possível um “feminicídio qualificado privilegiado”.

Filiamo-nos à primeira corrente, portanto entendemos ser juridicamente impossível a configuração da tese do “feminicídio qualificado privilegiado”.

4. OS CRASSOS ERROS DA SEGUNDA TESE [10]

Em algumas hipóteses, defender que o feminicídio é uma qualificadora objetiva seria interessante para fortalecer o combate à morte de mulheres, pois seria possível cumular a qualificadora objetiva do feminicídio com o motivo torpe ou fútil, que são subjetivas.

Assim, teríamos um feminicídio cumulado com motivo torpe.

É assim que vem decidindo o STJ:

Nos termos do art. 121, § 2.º-A, II, do CP, é devida a incidência da qualificadora do feminicídio nos casos em que o delito é praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar, possuindo, portanto, natureza de ordem objetiva, o que dispensa a análise do animus do agente. Assim, não há se falar em ocorrência de bis in idem no reconhecimento das qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio, porquanto, a primeira tem natureza subjetiva e a segunda objetiva. Agravo regimental improvido (AgRg no HC 440945/MG, 6.ª Turma, Min. Nefi Cordeiro, j. 05.06.2018).

 A segunda tese revela dois grandes erros, a saber:

Primeiro:

Torpe é o motivo baixo, abjeto, desprezível, repugnante, vil, ignóbil, que repugna a coletividade. Pergunta-se: matar uma mulher por razões da condição de sexo feminino, motivado pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher, não é algo repugnante, vil, ignóbil ou repugnante?

Entendo que sim. Portanto, o feminicídio traz em sua essência o conceito de torpeza, caracterizando-se um verdadeiro bis in idem a cumulação das duas qualificadoras, feminicídio mais a torpeza.

Segundo:

O concurso entre causa especial de diminuição de pena (homicídio privilegiado, artigo 121, § 1.º) e as qualificadoras objetivas, que se referem aos meios e modos de execução do homicídio, é aceito pela doutrina majoritária e pela jurisprudência do STF e STJ.

Dessarte, ao defender que o feminicídio é uma qualificadora objetiva, abre-se o temerário espaço para apresentação da tese de que o agente cometeu o feminicídio impelido por motivo de relevante valor moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima.

É a inaceitável e maquiavélica consolidação do:

“FEMINICÍDIO PRIVILEGIADO: O PRIVILÉGIO DE MATAR MULHERES”.

5-UMA SOLUÇÃO POSSÍVEL: FEMINICÍDIO COMO TIPO PENAL AUTÔNOMO

Para unificar as posições divergentes demandará muito tempo, ainda mais com a prevalência em nossa doutrina do garantismo penal condoreiro monopolar, facilmente podemos prever que em pouco tempo será dominante a tese do “feminicídio privilegiado”.

O chamado garantismo penal condoreiro monopolar, ou seja, doutrina que patrocina uma proteção exagerada e desproporcional ao réu na relação penal processual, e que hoje contamina grande parte da doutrina brasileira, logo fará a apressada filiação do feminicídio privilegiado, causando o usual fenômeno da violação ao princípio da proteção penal deficiente.

Cleber Masson, em citação à lição de Paulo de Queiroz, assinala:

Convém notar, todavia, que o princípio da proporcionalidade compreende, além da proibição do excesso, a proibição de insuficiência da intervenção jurídico-penal. Significa dizer que, se, por um lado, deve ser combatida a sanção desproporcional porque excessiva, por outro lado, cumpre também evitar a resposta penal que fique muito aquém do seu efetivo merecimento, dado o seu grau de ofensividade e significação político-criminal, afinal a desproporção tanto pode dar-se para mais quanto para menos. [11]

No Brasil, além de não dispormos de um potencial legislativo eficaz para combater a ascendente criminalidade, temos que conviver com os exageros garantistas monopolares, como bem anotam Américo Bedê Júnior e Gustavo Senna:

O exagero garantista, no sentido de que a “defesa tudo pode”, é tão gritante que chega a ponto de ensejar decisões inacreditáveis, que acabam fomentando comportamentos maliciosos, criminosos e desonestos dos réus no processo penal, desde que não venham a atingir os interesses de particulares, em uma visão individualista e – data venia – ultrapassada de um processo penal verdadeiramente democrático e garantista. [12]

Prevendo o que pode ocorrer em um futuro breve, a única solução plausível para que matar mulher por razões de gênero não seja um fato fomentador de privilégio, estou propondo a alguns parlamentares que o feminicídio deve ser retirado da qualificadora do homicídio e se tornar um crime autônomo com pena igual a do latrocínio, a saber:

Crime de feminicídio

Art. 121-A. Matar mulher motivado por razões da condição de sexo feminino:

Pena – reclusão de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, e multa.

§1.º Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

 I – violência doméstica e familiar;

II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Revogam-se o inciso VI e o § 2.º-A do artigo 121 do Código Penal.

A lei nº 8.072, de 25/07/1990 (Lei dos crimes hediondos) passa a vigorá com a seguinte redação:

I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos I, II, III, IV, V e VII);

I-B feminicídio (art. 121 – A).

Com a pena de reclusão, de vinte a trinta anos e multa, corrige-se um grave erro histórico, o Brasil é um dos únicos países do mundo que crime contra a vida (homicídio doloso),  tem a pena menor do que um crime contra o patrimônio, (o roubo seguido de morte, artigo 157, § 3º, inciso II, “pena é de reclusão de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, e multa”).

É fato que somente penas duras não irão resolver o problema da violência, mas uma coisa é certa: penas baixas e insignificantes aumentam a criminalidade e estimulam a impunidade.

Eis o maior ingrediente da violência: certeza da impunidade, por todos Sigmund Freud:


Há numerosos indivíduos civilizados que recuariam aterrados perante a ideia do assassínio ou do incesto, mas que não desdenham satisfazer a sua cupidez, a sua agressividade, as suas cobiças sexuais, que não hesitam em prejudicar os seus semelhantes por meio da mentira, do engano, da calúnia, contanto que o possam fazer com impunidade.

FRANCISCO DIRCEU BARROS Procurador-Geral de Justiça do Estado de Pernambuco, Vice-Presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União – CNPG, Região Nordeste.


[1] Disponível em: [http://www.tjrn.jus.br/index.php/comunicacao/noticias/8624-aumento-da-pena-para-feminicidio-da-maior-protecao-a-mulher-avalia-conselheira-do-cnj].

[2] Disponível em: [https://revistamarieclaire.globo.com/Noticias/noticia/2018/03/cada-duas-horas-uma-mulher-e-assassinada-no-brasil.html].

[3] Disponível em: [http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2019-02/numero-de-assassinatos-de-mulheres-no-brasil-em-2019-preocupa-cidh]. Acesso em: 22 mar. 2019.

[4] BARROS, Francisco Dirceu. Tratado de direito penal. São Paulo: 2ª Edição, JH Mizuno, 2021 (No prelo).

[5] BARROS, Francisco Dirceu. Tratado de direito penal. São Paulo: 2ª Edição, JH Mizuno, 2021 (No prelo).

[6]       CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Especial  (arts. 121 ao 361) – Volume Único. 11ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, pg. 67

[7] BARROS, Francisco Dirceu. Tratado de direito penal. São Paulo: 2ª Edição, JH Mizuno, 2021 (No prelo).

[8] BARROS, Francisco Dirceu. Tratado de direito penal. São Paulo: 2ª Edição, JH Mizuno, 2021 (No prelo).

[9]       GONÇALVES, Victor Eduardo Rios Direito penal esquematizado®: parte especial / Victor Eduardo Rios Gonçalves. – 9. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. .

[10] BARROS, Francisco Dirceu. Tratado de direito penal. São Paulo: 2ª Edição, JH Mizuno, 2021 (No prelo).

[11] MASSON, Cleber. Direito penal: parte geral. 10. ed. São Paulo: Método, 2016. p. 56.

[12] BEDÊ JÚNIOR, Américo; SENNA, Gustavo. Garantismo e (des)lealdade processual. In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PALELLA, Eduardo (Org.). Garantismo penal integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e a aplicação do modelo garantista no Brasil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 105-123.

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