O cancelamento no ambiente de trabalho

Funcionária trabalhando sozinha no escritório mesmo rodeada de pessoas
Photo by Anthony Da Cruz on Unsplash

Recentes ocorrências de cancelamento de pessoas expostas publicamente nos chamou a atenção, contudo, sem tratar dos casos específicos, podemos aprofundar no tema de modo mais amplo e que atenda a imensa maioria de trabalhadores.

Assim, o primeiro questionamento é: o que realmente é a chamada “cultura do cancelamento” e se existe prejudicialidade nessa conduta, por vezes coletiva e anonimizada.

Resumidamente, a dita “cultura” é, na verdade, uma série de manifestações de repúdio e pedidos de quebra de contratos de todos os tipos e formas possíveis, com fito de restringir ou mesmo negar fonte de renda de pessoas, manifestações estas motivadas, por sua vez, por pontos de vista ou opiniões das vítimas.

Apesar da anonimização dada pelo efeito de manada que ocorre com figuras públicas, que têm um alcance muito maior do que trabalhadores comuns, percebemos que os traços dos pedidos de cancelamentos são os mesmos.

Por vezes opiniões políticas ou ideológicas são atacadas por essas coletividades de canceladores, algo próximo do mobbing. Contudo, nota-se que algumas chegam a níveis de publicidade tão grande que outras pessoas com alta exposição midiática pedem, também publicamente, que o emissor da opinião perca suas fontes de rendas e tenha contratos cancelados.

Bom exemplo estrangeiro é o caso do cantor Neil Young, que ameaçou retirar todo seu conteúdo da plataforma do Spotify, empresa de streaming de música e podcasts, pois a empresa se negava a apagar conteúdo de um Podcast, feito por Joe Rogan. No caso, houve entrevista de terceiros no podcast e o conteúdo da entrevista foi percebido por muitos como falso.

Abstraindo-se do caso concreto, a situação é idêntica ao cancelamento e o mobbing, inclusive, percebe-se que há uma ameaça de rescisão de parceria comercial, caso o cancelado não seja afetado economicamente.

Necessário se faz afastar do caso concreto, principalmente na ciência do Direito, além das demais que podem ser utilizadas neste estudo, para se chegar à conclusão oponível à generalidade.

Ou seja, após veiculação de uma opinião (ou posicionamento ideológico), houve comportamento de uma coletividade não identificada de pessoas pedindo o “cancelamento” do sujeito passivo, o que retirar-lhe-ia uma das fontes de renda, simplesmente por ser contrário à ideologia daquela coletividade.

Ressaltamos, novamente, que não entraremos nos casos concretos, vez que podem trazer peculiaridades que fogem ao que aqui foi proposto inicialmente. De toda forma, seguimos.

Nesta etapa podemos observar que o comportamento dessa coletividade, dessa mob, é contrário aos preceitos constitucionais inerentes à pessoa humana, ou seja, é contrária ao Direito Fundamental à Liberdade de Expressão[1], que também se configura Direito da Personalidade, vez que não tolera pensamentos e opiniões diversas das suas. Ainda, fica longe do que se objetiva como sociedade.

Não que o direito de liberdade de expressão seja ilimitado, pelo contrário. Contudo, e a bem da verdade, já existem meios de repreender os abusos dos Direitos, incluindo-se sanções civis e criminais.

Impõe, portanto, o exercício para entendermos se o “cancelamento” é saudável ou mesmo algo lícito. De pronto, alinhamo-nos pela licitude da movimentação em si, não do que se veicula, ou seja, como forma de livre expressão, é necessário se proteger tal manifestação. Repúdio e contra argumentação são lícitos, contudo, exercer pressão, inclusive econômico-financeira, para que o “cancelado” tenha contratos e rendas perdidos assemelha-se ao assédio moral.

Adiantando-se a perspectiva final do artigo, passamos para a seara da relação de emprego, que tem magnitude muito menor e restrita ao ambiente de trabalho e, possivelmente, à coletividade de colaboradores da empresa.

Aplicando-se o modelo, ainda, à relação de emprego, percebemos que o cancelamento pode ser horizontal – aquele feito no mesmo nível hierárquico –, ou vertical – feito por superiores ou mesmo subordinados – e ambos podem ser desastrosos.

O que sobressai dessa visualização é, na verdade, espécie de violência psicológica e moral.

Ora, se o empregador não tem o mesmo pensamento ideológico, político ou de opinião, isso não autoriza que seja finalizado o contrato de trabalho pelo simples fato da desavença ideológica. Vale lembrar que para incidir o “cancelamento”, teria de ocorrer manifestação pública (ou equivalente) por parte do empregado, que eclodiria o atrito no campo ideológico.

Não se trata, portanto, de simples direito potestativo de finalização do vínculo empregatício, mas de verdadeiramente uma afronta à moral do empregado que expressou, por algum meio, suas ideias. Ou seja, quando existe um evento que marca, no tempo e espaço, um ponto de atrito entre as partes da relação de trabalho, levando, então, à discriminação deste para com os demais, perceptível será o assédio e dispensa discriminatória.

Quando existir uma pressão de certo grupo de pessoas, ou mesmo outro empregado singular, no sentido de que aquele “cancelado” seja penalizado com a perda do seu emprego e garantia de renda, pode-se estar diante de mobbing e perseguição.

Assim como não se pode cercear o Direito de Liberdade de Expressão dos seres humanos, guardadas as proporções de legalidade, também não se deve puni-los por ter ideias e pensamentos próprios. A raiz forte da Democracia Brasileira é a pluralidade de ideias, pensamentos, credos, virtudes e, para o bem ou para o mal, defeitos.

Incentivar, educar e conscientizar todos dentro da dinâmica e hierarquia empresariais é essencial para o desenvolvimento de qualquer entidade empreendedora, gera riqueza de ideias e propulsiona o futuro.

Se o pensamento é equivocado (não se leia ilícito), o melhor a se fazer é engajar, discutir, argumentar, mesmo que o resultado não seja tão produtivo quanto se espera. De outra banda, se cercearmos toda e qualquer manifestação alheia às nossas ideias, não haverá diálogo, muito menos crescimento profissional.

É importante que se conscientize os colaboradores para que não cometam o erro de mobilizar contra um outro ser humano, simplesmente para vê-lo perder sua fonte de renda, seja por vingança ou por dissonância de pensamentos.

Lembramos, novamente, que o aqui discutido não se aplica aos casos em que o emissor de ideias e pensamentos veicula publicamente algo ilegal, ilícito, imoral ou afim. Contudo, se assim o fizer, melhor nos parece que os atingidos recorram aos ditames da Constituição Federal e das Leis de Regência, que têm em si, instrumentos suficientes para dirimir as questões, tais como: direito de desagravo público, calúnia, difamação, injúria, reparação civil, entre diversos outros.

A conclusão, como antecipado, é pela ilicitude da dispensa motivada pelo cancelamento do empregado, seja por desavença com o empregador após exposição de ideias e pensamentos, ou seja pela pressão de terceiros (externos) ou mesmo de colegas de trabalho, em qualquer nível de hierarquia que for, por constituir assédio moral, mobbing e perseguição.

Engajar, acolher, conscientizar e construir diálogo são saídas muito mais saudáveis, que demonstram maturidade do empreendedor e dos colegas de trabalho, que propiciam, além de tudo, crescimento coletivo e para o indivíduo “cancelado”, inclusive.


[1]Art. 5º . IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

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