Normas de saúde e segurança do trabalho – alteração por normas coletivas?

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A saúde figura como direito fundamental da pessoa humana, sendo assegurada por normas de ordem pública internacionais, constitucionais, infraconstitucionais e infralegais.

A OIT (Organização Internacional do Trabalho) prevê um patamar mínimo universal de proteção laboral, consagrando, ainda, a prioridade do princípio da prevenção para assegurar um meio ambiente do trabalho seguro e saudável.

A Convenção 155 da OIT prevê que a Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalho “terá como objetivo prevenir os acidentes e os danos à saúde que forem consequência do trabalho, tenham relação com a atividade de trabalho, ou que se apresentarem durante o trabalho, reduzindo ao mínimo, na medida que for razoável e possível, as causas dos riscos inerentes ao meio ambiente de trabalho”.

Nesse contexto, o objetivo da Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalho é prevenir qualquer risco à segurança e saúde do trabalhador.

O direito à saúde do trabalhador está consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil, especialmente nos artigos 6º, 7º, 196 e 200.

Na ordem infraconstitucional, há a legislação trabalhista e previdenciária e, na ordem infralegal, o Ministério do Trabalho (atualmente Secretaria Especial integrante do Ministério da Economia) dispõe sobre saúde e segurança do trabalhador, por meio de Normas Regulamentares.

Em relação às normas coletivas previstas em acordo e convenção coletiva, a Lei nº 13.467/2017, a chamada Lei da “reforma trabalhista”, acrescentou à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), os artigos 611-A e B, que consagram o princípio da autonomia da vontade coletiva.

O artigo 611-A, da CLT, estabelece que os acordos e convenções coletivas têm prevalência sobre a lei, podendo dispor, entre outros direitos, sobre alterações em normas relativas à saúde e a segurança no trabalho, a saber: no intervalo intrajornada, no enquadramento do grau de insalubridade e na prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia do Ministério do Trabalho, conforme incisos III, XII e XIII.

A fim de corroborar tal premissa, o parágrafo único, do artigo 611-B, disciplina que regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins dispostos neste artigo.

Dessa forma, a reforma trabalhista autoriza a modificação de normas de ordem pública, quais sejam, as normas sobre saúde e segurança do trabalhador por meio de normas coletivas disciplinadas em acordos e convenções coletivas, que prevalecerão sobre a Lei.

Todavia, as disposições contidas nos artigos 611-A e B, da CLT, violam a Constituição da República Federativa do Brasil, em especial o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, previsto no artigo 7º, XXII, da CF.

Ora, todas as normas do ordenamento jurídico interno retiram sua validade da Constituição da República Federativa do Brasil, sendo nulas de pleno direito quando disciplinam direitos e obrigações de forma contrária às suas normas.

A CLT é norma infraconstitucional que não pode prevalecer em relação aos direitos e garantias previstos na Constituição Federal. A vontade coletiva, ao poder disciplinar direitos e obrigações de forma diversa da lei, só poderá fazê-lo, em consonância com os ditames constitucionais.

Nesse contexto, não se afigura válida a supressão ou redução de direitos trabalhistas que envolvam a saúde a segurança do trabalhador por meio de normas coletivas disciplinadas em acordos e convenções coletivas, pois não preenchem o requisito da licitude do objeto, essencial à validade dos negócios jurídicos, na forma prevista no artigo 104, do Código Civil.

Explica-se: As normas de saúde e segurança do trabalho são normas de ordem pública, previstas na Constituição da República Federativa do Brasil, sendo indisponíveis e, por conseguinte, não passíveis de redução ou supressão por normas coletivas infralegais.

A própria CLT, em seu artigo 8º, § 3º, prevê que, ao examinar os acordos e convenções coletivas, a Justiça do Trabalho deverá analisar a conformidade do negócio jurídico, respeitado o artigo 104, do Código Civil.

Insta salientar-se que, no Recurso Extraordinário nº 590.415, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, que entendeu válida a dispensa incentivada aprovada em acordo coletivo, não houve o reconhecimento de que a negociação coletiva pudesse se sobrepor às normas de saúde e segurança do trabalho, incluindo as regras sobre a prestação de serviços em condições insalubres e o recebimento do adicional de insalubridade.

Na linha desse entendimento, restou declarado na referida decisão do Supremo Tribunal Federal que “as regras autônomas juscoletivas podem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo, mesmo que sejam restritivas dos direitos dos trabalhadores, desde que não transacionem setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade absoluta”, devendo-se proteger um “patamar civilizatório mínimo” que abrange, entre outras, as normas de saúde e segurança do trabalho.

Conquanto a reforma trabalhista tenha consagrado o princípio da autonomia da vontade coletiva, no intuito de permitir que os atores sociais disciplinem da melhor forma os direitos e obrigações concernentes à relação de trabalho, existe um núcleo mínimo de proteção do trabalhador que deve ser respeitado.

O núcleo mínimo de direitos existenciais que se fazem necessários para a garantia da dignidade da pessoa humana não pode ser objeto de concessões. Todas as normas do ordenamento jurídico interno e internacional encontram como vetor a dignidade da pessoa humana.

Cabe lembrar que, a Constituição Federal também prestigia a autocomposição dos conflitos trabalhistas, conforme previsão do artigo 7º, XXVI. Sendo que, a proteção aos contratos individuais do trabalho não é a mesma no Direito Coletivo do Trabalho, no qual as partes são equiparadas.

Nas brilhantes palavras de Maurício Godinho[1]:

“Os instrumentos colocados à disposição do sujeito coletivo dos trabalhadores (garantia de emprego, prerrogativas de atuação sindical, possibilidade de mobilização e pressão sobre a sociedade civil e Estado, greve etc.) reduziram, no plano juscoletivo, a disparidade lancinante que separa o trabalhador, como indivíduo, do empresário. Isso possibilitaria ao Direito Coletivo conferir tratamento jurídico mais equilibrado às partes nele envolvidas. Nessa linha, perderia sentido no Direito Coletivo do Trabalho a acentuada diretriz protecionista e intervencionista que tanto caracteriza o Direito Individual do Trabalho”.

Contudo, por mais que se pretenda politicamente orientar-se pelo neoliberalismo, com a interferência mínima do Estado nas relações jurídicas entre particulares, em especial no Direito Coletivo do Trabalho, não se pode permitir que os direitos fundamentais sejam violados. E, assim, justamente, na interferência mínima do Estado, deve ser garantida a dignidade da pessoa humana.

Nesse diapasão, as normas de saúde e segurança do trabalho não podem ser objeto de redução e supressão por normas coletivas, sob pena de afronta à dignidade da pessoa humana e aos direitos sociais fundamentais do trabalhador.


[1] DELGADO, MAURÍCIO GODINHO. Curso de Direito do Trabalho. 10. ed., São Paulo: LTR, 2011, p. 1250-1251.

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