Lei 14.151/2021 – Afastamento da empregada gestante das atividades de trabalho presencial: uma análise sistêmica

Mulher grávida faz símbolo decoração com as mãos

“O Direito é essencialmente uma coisa viva. Está ele destinado a reger homens, isto é, seres que se movem, pensam, agem, mudam, se modificam. O fim da lei não deve ser a imobilização ou a cristalização da vida, e sim, manter contato íntimo com esta, segui-la em sua evolução e adaptar-se a ela”. Henri de Page

Prezado (a) Leitor (a),

# Introdução

É de conhecimento mundial que estamos passando por tempos difíceis. O Direito e, consequentemente, as leis, por terem a função de acompanhar a sociedade e suas necessidades estão em constante mutação. Sendo assim, no dia 13/05/2021, foi publicada a lei 14.151/2021, a qual dispõe sobre o afastamento da empregada gestante das atividades de trabalho presencial durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do novo coronavírus e assim estabeleceu:

Art. 1º Durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do novo coronavírus, a empregada gestante deverá permanecer afastada das atividades de trabalho presencial, sem prejuízo de sua remuneração.

Parágrafo único. A empregada afastada nos termos do caput deste artigo ficará à disposição para exercer as atividades em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância.

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Apesar de ser uma lei pequena, olhar para ela de forma mais detida é de grande valia. Utilizaremos os fundamentos básicos trazidos por Bert Hellinger para fazer reflexões legais sobre os impactos desta lei na sociedade e os reflexos no campo laboral e previdenciário, a partir de uma perspectiva sistêmica.

# Breve Digressão

A expressão “Direito Sistêmico”, cunhada pelo juiz Sami Storch, representa a atuação dos operadores do direito, os quais atuam não só com olhar voltado para o Direito , leis e processo formal , mas sim, sistêmico.

O Direito, além da técnica jurídica, engloba pessoas, uma vez que está inserido nas ciências humanas, e por essa razão se faz necessário também analisar a norma com base nas relações humanas e os impactos que repercutem em tais relações. Como ferramenta e instrumento, o Direito Sistêmico traz na sua base as Ordens do Amor, fundamentos de qualquer sistema (familiar ou organizacional, por exemplo) e cunhadas por Bert Hellinger. As Ordens do Amor se dividem em pertencimento (todos devem se sentir pertencentes ao sistema), hierarquia (a precedência deve prevalecer) e o equilíbrio ( entre o dar o receber).

O desrespeito a qualquer dessas ordens causa o emaranhamento, o conflito.

Bert Hellinger também desenvolveu a percepção das Ordens da Ajuda, as quais auxiliam os profissionais que atuam com questões que envolvem relações humanas a achar seu lugar para ajudar os envolvidos naquelas relações, sem se tornar um catalisador de uma espiral do conflito que dificultaria as soluções para as questões surgidas naquelas relações.

Passados esses breves esclarecimentos, passaremos a uma análise das Ordens da Ajuda e das duas primeiras Ordens do Amor e a suas correlações com a lei 14.151/2021.

# Ordens da Ajuda

Uma solução simplista trazida pela lei ou pela decisão judicial traz uma solução e alívio momentâneos, mas muitas vezes não é capaz de resolver por completo e dar um fim na relação conflituosa. É possível afirmar que o comando legal traz uma pseudo-solução para os casos das empregadas gestantes nesse atual cenário pandêmico, parindo, sem ter gestado anteriormente, um novo dever para os empregadores que, poderá, ter efeitos desastrosos para os postos de trabalho de muitas trabalhadoras e repercussões financeiras negativas para empresas e para a própria economia.

A sensação que advém do conteúdo da lei em apreço é que o Estado precisava atuar no tema referente ao trabalho de gestantes em meio à pandemia, o que sem dúvida é assunto delicado e de urgência. Assim, precocemente e sem análises mais aprofundadas, editou uma regra que, aparentemente, é protetiva e estaria salvaguardando a mãe e seu filho. Em contrapartida, desconsiderando o universo de nuances existentes entre empresas, setores da economia e realidade atual do grande número dos sistemas organizacionais nacionais, repassou toda a responsabilidade pela proteção necessária da empregada gestante ao seu empregador.

Sob as lentes de um olhar sistêmico, além de violações às leis do pertencimento e do equilíbrio, como se verá adiante, também há excesso de proteção para um lado, sem auxílio algum para o outro lado, violando as ordens da ajuda. Isto porque, a previsão legal ora analisada desconsiderou espaço para a autonomia das partes envolvidas na relação de trabalho e deu a resposta imputando toda a responsabilidade para a iniciativa privada. Logo, a lei reverbera como salvadora, tomando a empregada gestante como vítima e as empresas quase como algozes, quando o inimigo comum a todos, a saber, o vírus, quase passa despercebido na lei.

Analisando os 5 passos das Ordens da Ajuda desenvolvidas pela filosofia Hellingeriana, a Lei 14151/21 deu o que não tem (já que depende de um terceiro para que seja efetiva, posto que quem vai arcar com a remuneração é o empregador, em especial nos casos em que é impossível teletrabalho); quando a primeira ordem orienta que apenas se deve dar o que tem e esperar receber o que necessita (aqui também a lei não demonstrou olhar para a gestante enquanto sujeito de direito e com capacidade de escolhas).

Ademais, no tocante a segunda ordem da ajuda, que prevê que apenas se ajude a quem solicitar, interferindo e apoiando na medida do que é permitido, a Lei extrapola no peso da sua mão, apegada à postura de que está dando uma solução plausível, sem considerar todos os aspectos do cenário atual que vem buscando estratégias e saídas de reestruturações das atuações organizacionais e manutenções de emprego de acordo com a realidade atualmente imposta.

Isso nos leva à violação da terceira ordem da ajuda, pois ao contrário de olhar para as partes como adultos, projetou-se no papel de “pai/cuidador” das partes, dizendo quem deve se calar e ser ajudado e quem deve prover com ajuda sob pena das consequências legais. Com isso, violou a quarta ordem da ajuda, uma vez que não teve empatia com as partes. E, por fim, passou ao largo da quinta ordem da ajuda, pois não viu cada um daqueles atores sociais como efetivamente são, mas sim, generalizou as possíveis realidades e as encaixou em dois únicos “sacos”: o “saco” da gestante que só trabalhará à distância ou não trabalhará, mas terá salário e, o “saco” do empregador que arcará com essa dinâmica orquestrada pela Lei, custe o que custar.

Essas reflexões são provocativas, para trazer à tona a possibilidade de olhar de maneira crítica a generalidade da Lei em apreço, pois legislou tema extremamente relevante, em uma época de estado de calamidade, criando uma sensação falaciosa de solução que, na prática, poderá deixar muitas empregadas gestantes momentaneamente desamparadas, haja vista que grande parte das empresas de nosso país não possui saúde financeira capaz de cumprir a Lei de imediato. Logo, no pontual momento de crucial necessidade de zelo e apoio muitas empregadas gestantes ficarão à margem social, sem apoio do setor privado e sem apoio do Estado, necessitando buscar auxílio jurídico para tentar fazer valer aquele genérico texto legal no Judiciário, o que na prática as deixará um período desprotegidas mesmo com sua Lei protetora.

# Ordem do pertencimento

Insta esclarecer, que a lei 14.151/2021, objeto do nosso estudo, engloba a empregada gestante, vacinada ou não, (doméstica, rural, urbana, intermitente, avulsa, empregada pública e temporária) e não abarca as servidoras públicas (regime jurídico-administrativo) e nem a empregada autônoma, pelo fato desta não se enquadrar no conceito específico celetista de empregada, mas sim no conceito mais amplo de trabalhadora, não estando amparada por tal determinação e também pelo fato de arcar com os riscos da atividade econômica. Em breves linhas, o pertencimento traduz que todos têm o direito de pertencer. O sistema legal possibilita o afastamento para a EMPREGADA.

Posto isto, em respeito à isonomia, o direito concedido a empregada deveria ser estendido à estatutária, uma vez que a teleologia da norma é a proteção ao filho.

A Constituição Federal determina (art 5°, caput, CF) que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.


# Ordem do equilíbrio

O  Equilíbrio se caracteriza pelo balanceamento entre o dar e o receber, é a ordem mais difícil de ser mantida na relação de trabalho. Passaremos a examinar questões que reverberam na ordem do equilíbrio:

  1. Na nossa sociedade, os índices demonstram certo preconceito com a figura da mulher no mercado de trabalho e com a pandemia – pela questão do afastamento em razão da gravidez e dessas mulheres não terem com quem deixar seus filhos – a produtividade do trabalho de algumas mulheres caiu e muitas precisaram faltar mais que o esperado.

Para fortificar tal embasamento: Do terceiro trimestre de 2019 até igual período do ano passado, as mulheres perderam 5,7 milhões de postos de trabalho e o desemprego aumentou em 504 mil. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE. Segundo a pesquisa “Sem Parar: O trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, realizada pelas organizações Gênero e Número e Sempreviva, metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém durante a pandemia (filhos, idosos, pessoas com deficiência ou outras crianças). Dessas, 42% não têm apoio externo, como profissionais, instituições ou vizinhos. Entre as mães, metade (49%) afirmou que aumentou a necessidade de auxiliar os filhos de até 12 anos nas atividades educacionais on-line. Responderam ao questionário on-line do estudo, disponibilizado entre abril e maio de 2020, 2.641 mulheres de todas as regiões do Brasil, em área urbana e rural.[1]

Ademais, o segundo ano da pandemia da covid-19 em 2021 indica um retrocesso de quatro anos em termos de conquistas das mulheres no mercado de trabalho. E os prejuízos causados na empregabilidade e aqueles envolvendo a diferença de salário na comparação com homens só devem ser neutralizados em 2030 caso o ritmo dos progressos vistos antes dobre e os esforços de boas práticas empresariais e políticas públicas aumentem, diz relatório anual da PwC.[2]

Então, algo que parece ser benéfico, feito de forma generalizada, pode trazer prejuízos, afetando o equilíbrio nas relações trabalhistas.

  • No que tange à autonomia de vontade, por conta da indisponibilidade absoluta do Direito, não existe escolha. A lei 14.151/2021 utiliza inclusive o verbo “deverá”, para demonstrar que não é uma faculdade o afastamento da gestante. Sendo assim, estando grávida: a mulher será afastada do trabalho para prestar sua atividade à distância e se não for possível ser realocada, ficará sem trabalhar e receberá por isso. Fica a reflexão: até que ponto – em um momento de crise – o empregador irá suportar uma nova modalidade de interrupção do contrato de trabalho? E isso também parece ferir o equilíbrio.
  • Se a empregada exerce atividades essenciais ou que não permite o trabalho à distância remoto ou teletrabalho?

Pelo fato de o empregador não conseguir cumprir o que estabelece o Art.392,§ 4º,CLT, o qual determina que é  garantido à empregada, durante a gravidez, sem prejuízo do salário e demais direitos: I- transferência de função, quando as condições de saúde o exigirem, assegurada a retomada da função anteriormente exercida, logo após o retorno ao trabalho,  o empregador deve arcar com a sua remuneração.

# Qual é a solução? Existe um meio – termo que traga o equilíbrio?

Diante de tudo isso, algumas possíveis soluções podem ser sugeridas para trazer uma harmonia maior ao sistema:

1) fazer análises e trazer as peculiaridades  de acordo com as empresas, setores da economia e realidade atual do grande número dos sistemas organizacionais nacionais e repartir as responsabilidades entre empregadas gestantes, empregadores e Estado.

2) Se a gestante trabalhar em atividade não essencial ou essencial e for possível o trabalho remoto, à distância ou o teletrabalho ela continua trabalhando nessa modalidade, mantendo o equilíbrio na relação de trabalho.

3) Se a gestante trabalhar em atividade incompatível com o trabalho à distância, remoto ou teletrabalho, o empregador pode se utilizar do art.392,§4°,CLT (transferência de função), não sendo possível, o empregador poderá aplicar o art.8°, MP 1.045/2021 (Programa Emergencial de Manutenção de Emprego e Renda) – a suspensão temporária do contrato de trabalho – nos casos que a lei permite. Frise-se que se o valor a ser recebido pela gestante não chegar ao valor total da sua remuneração, o empregador precisa complementar a diferença, para não ter prejuízos na remuneração da gestante, conforme a lei 14.151/2021 garante ou aplicar alguma hipótese da MP 1046/2021(antecipação de férias individuais; banco de horas, entre outras). Esta solução divide a responsabilidade entre o Estado e o empregador e garante o afastamento da gestante e a proteção ao nascituro.

Entretanto, é importante destacar uma ressalva, no caso da gestante empregada pública que trabalhe em atividade essencial, em virtude do concurso público (art.37,I,CF), não pode ser transferida de função e quando a sua função englobar a  incompatibilidade do cargo com o trabalho à distância, remoto ou teletrabalho, pode se prejudicar, pelo fato da empresa pública não ter pessoal (mão de obra suficiente) e/ ou estar em dificuldades financeiras e não conseguir arcar com a remuneração dessa empregada. Ademais, existe o agravante de que a MP 1045/2021 determina que empresas públicas não poderão se valer do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e Renda (vedação no art.3°, parágrafo único, b, MP 1045/2021). Este é mais um fato que reverbera na ordem do equilíbrio quando analisamos a norma com um olhar sistêmico.

  • Nos casos em que a empregada gestante atue na área de saúde ou em ambientes insalubres que não permitam a transferência da função para ambiente salubre, para preservar esta ordem do equilíbrio, é possível a aplicação do art. 394-A,§3°,CLT, o qual permite que quando não for possível a gestante exercer suas atividades em local salubre da empresa, a hipótese será considerada como gravidez de risco  e ensejará a percepção de salário-maternidade, nos termos da lei 8.213/1991, durante todo o período de afastamento.
  • Ademais, uma atuação de medidas preventivas nos sistemas organizacionais é de grande valia, haja vista que permitirá analisar cada um dos casos com suas nuances e realidades, buscando a justa medida que contemple proteção da gestante e a manutenção do emprego dentro das circunstâncias inerentes à cada caso, o que também implicará em necessidade de auxílio por meio de Políticas Públicas específicas. Para essa atuação preventiva o papel dos Sindicatos e da própria advocacia será fundamental.

# Conclusão

Por tudo isso, concluímos que, nasce uma lei prematura, travestida de benéfica, pois traz efeitos sociais sem ter escutado os atores por ela impactados. Essa Lei parida precocemente pode ter efeitos de natimorta em muitos casos e, esses casos, merecem e devem ser vistos com muito respeito.

Assim, as presentes reflexões são convites para que novas possibilidades possam ser construídas com equilíbrio e seja possível a realização de um dos escopos do Direito: a paz social!


[1]https://www.institutounibanco.org.br/conteudo/pandemia-elevou-sobrecarga-de-trabalho-das-mulheres-na-educacao/

[2]https://www.istoedinheiro.com.br/conquista-da-mulher-no-mercado-de-trabalho-deve-retroceder-4-anos-com-pandemia/

Photo by Alicia Petresc on Unsplash

2 thoughts on “Lei 14.151/2021 – Afastamento da empregada gestante das atividades de trabalho presencial: uma análise sistêmica

    1. Com certeza mas a responsabilidade por essa vida não deveria ter sido transferida para os empregadores. Muitos empregadores estão deixando de contratar mulheres e até as demitindo por conta dessa lei esdrúxula.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Voltar ao topo