O consumidor brasileiro sempre viveu, desde a gênese da Legislação consumerista, um enorme paradoxo na defesa de seus Direitos Fundamentais. É de grande peso a alegação trazida, mas que detém sustentação em mais de 30 anos de Código de Defesa do Consumidor.
Especificamente quando tratamos do consumidor brasileiro, percebemos que a este é muito querido o status de bom pagador. A sensação de quitação das obrigações bancárias e de crédito não é só documental, transcende o meio digital e efetivamente enche de alegria o cidadão brasileiro.
Contudo, na contramão, é possível vislumbrar que a pecha de mal pagador, que evolui para caloteiro, é das que mais traz mágoas ao cidadão, que é trabalhador e insistente na busca dos seus sonhos. Nada disso tem alívio em meio a pandemia que assola o mundo.
Entretanto, e como não poderia deixar de ser, o sistema bancário visa primordialmente o lucro, por mais que tenha havido efetiva evolução dos Direitos e das perspectivas da função da empresa no meio social e dos implícitos deveres de lealdade quando opera. Daí, podemos extrair que este lucro advém da atividade cerne do sistema, as operações de crédito, ou seja, a utilização do dinheiro investido naquela casa bancária para empréstimo às demais clientes.
O introito, um tanto quanto óbvio, é necessário para apontar que o sistema, após muitos anos de falta de transparência, vem degustando mudanças razoáveis nas suas regras, operações e sistemas. Claro, nem tudo é com objetivo único de melhorar a experiência do consumidor, que com certeza está entre os alvos das mudanças legislativas e normativas, sendo certo que há nítido intuito de maior controle da informação, tanto das instituições quanto dos usuários.
Isto é cada vez mais claro e se torna evidente na sociedade moderna, que como diz a professora Shoshana Zuboff (Harvard Business School) ultrapassou a “sociedade da informação”, e chegou à Era do Capitalismo da Vigilância: a informação é o insumo mais valioso da atualidade.
Inúmeros são os casos em que se pode lucrar com a utilização da informação das pessoas e das empresas. Até por isso que o Congresso Nacional se debruçou especialmente na questão da proteção dos dados, elevando a condição desse conjunto de informações e dando proteção legal adequada por meio da Lei Geral de Proteção de Dados.
Apesar disso, focamos em recente modificação do Banco Central do Brasil, que inaugurou o sistema de “open banking”, e que, nas palavras do órgão, é “a possibilidade de clientes de produtos e serviços financeiros permitirem o compartilhamento de suas informações entre diferentes instituições autorizadas pelo Banco Central”.
A ideia é absolutamente alinhada com os novos conceitos de proteção de dados e do consentimento, palavra intrinsecamente relacionada aos Direitos do Consumidor, e tantas vezes relevada pelos fornecedores de serviços e bens. Ou seja, a partir da declaração de vontade do consumidor, os bancos poderiam trocar informações entre si, consolidando este amalgama de dados, o que faria fortalecer o crédito do usuário.
Ponto de grande interesse, reforçamos, é o consentimento, em outras palavras: a declaração objetiva e clara da vontade do usuário. Veja-se que o consumidor deve exarar seu consentimento expresso para que as instituições bancárias possam compartilhar seus dados “positivos”, o que é ótima premissa.
Não obstante, nos parece que o consentimento fora, ao longo de décadas, completamente relevado pelo mesmo sistema bancário, e pior, tão somente para manchar o bom nome dos cidadãos. Prova disso é o julgamento do Superior Tribunal de Justiça (Resp 1419697/RS – relator Paulo Sanseverino – Julgamento em 12/11/2014) em que se considerou “desnecessário o consentimento do consumidor” para que empresas mantivessem dados pessoais dos consumidores sem sua autorização e utilizados em seu detrimento, fazendo alusão à Lei 12.414/2011, que versa sobre o cadastro positivo.
Ainda na seara dos julgamentos, apontamos outro precedente extremamente prejudicial no qual não se viu qualquer irregularidade no compartilhamento de dados ditos cadastrais de consumidor, sem seu consentimento ou conhecimento, entre instituições bancárias, pois não teria se ferido o sigilo bancário (Resp 689.581/AL – Relator Meneses Direito – julgado em 20/03/2007).
Com efeito, de lá para cá se viu uma vertiginosa alta na utilização de dados altamente sensíveis (expressão resguardada somente com a LGPD em 2020), com troca de informações entre instituições bancárias e empresas quaisquer que utilizassem os serviços dos ditos órgãos de proteção ao crédito.
Em suma, foi possível, durante décadas, utilizar os dados do consumidor, sem seu consentimento, para diminuir-lhe o crédito e negar-lhe contratos e financiamentos, ao passo que, paradoxalmente, é necessário seu consentimento para compartilhar dados positivos do consumidor. Não se repreende o último, mas sim o antecedente.
Percebeu-se, durante tal experiência do consumidor, como tivemos a oportunidade de apontar em outros artigos, que os sistemas e relações entre as casas bancárias e demais instituições é tudo, menos transparente. Ocorre que pouca luz se joga na discussão. Talvez com o advento da Lei Geral de Proteção de Dados o panorama se modifique para melhor.
No passado, era comum um consumidor ser “pesquisado” por dezenas de empresas, num banco de dados formado por outras dezenas de fontes, do qual nunca sequer teve acesso ou pôde pleitear esclarecimento sobre as fórmulas e estatísticas, vez que se trata de propriedade intelectual das empresas detentoras dos seus dados pessoais sensíveis, que por vezes, acaba sendo “negativado”.
Tratamos, em outro momento, da ilegalidade da manutenção do “score” em patamares negativos mesmo após decisão judicial liminar ou definitiva que determina suspensão ou cancelamento da dívida que levou à negativação, mas nos parece que não teve efeito e continuam as irregularidades, infelizmente.
Ante tantos exemplos da opacidade tremenda nos casos de tratamento de dados sem consentimento do consumidor e das confirmações de legalidade de tais métodos sombrios pelo Judiciário Brasileiro, resta-nos alertar para a possível mudança de paradigmas e do aumento da responsabilização das empresas de banco de dados creditícios (ditos órgãos de proteção ao crédito), que hoje funcionam como um mercado de dados sensíveis e também, inversamente, de venda de vigilância dos dados que as próprias empresas comercializam na forma de “negativações”.
Finalizando, é importante que o consumidor veja claramente que a sua declaração de vontade é primordial para esses bancos de dados existam e operem com suas informações pessoais e de crédito e que a falta de transparência dessas instituições pode ser discutida no âmbito judicial.
As inovações são bem-vindas, e, como dito, estão se alinhando com as premissas da Lei Geral de Proteção de Dados e os novos paradigmas sociais que devem se impor na Era do Capitalismo de Vigilância, e é imprescindível que os sistemas e operações sigam a mesma linha.