Cumpre delinear, primeiramente, as balizas gerais a propósito dos institutos da citação e da execução definitiva. Na sequência, então, serão tecidos os contornos de um caso hipotético, a fim de permitir ao leitor a correta compreensão do questionamento apresentado no presente artigo.
Da Citação
A citação é o ato processual pelo qual o réu é cientificado acerca da existência de uma ação em curso, convocando-o a integrar a relação processual e dando-lhe a oportunidade de se manifestar nos autos (artigo 238 do CPC).
No Direito Processual do Trabalho, a doutrina denomina como notificação inicial referido ato[1], uma vez que a CLT emprega de maneira genérica o termo ‘notificação’ (vide a título de exemplo artigos 712, alínea ‘i’, 774, caput, 800, caput, e 841, caput e §1º).
Como regra geral, a secretaria da Vara do Trabalho expede a notificação via postal (correio), sendo certo que, na hipótese de o reclamado não ser localizado, a notificação será feita por edital (artigo 841, §1º, CLT):
§ 1º – A notificação será feita em registro postal com franquia. Se o reclamado criar embaraços ao seu recebimento ou não for encontrado, far-se-á a notificação por edital, inserto no jornal oficial ou no que publicar o expediente forense, ou, na falta, afixado na sede da Junta ou Juízo.
Considerando que as normas jurídicas não existem separadas e isoladas umas das outras, mas sempre em um contexto de normas que guardam relações particulares entre si[2], o Código de Processo Civil, à luz do artigo 15, deve ser aplicado subsidiária e supletivamente na sistemática processual trabalhista.
Diante disso, verifica-se que o diploma processual regula a citação por edital nos artigos 256 a 259, destacando-se a previsão do artigo 256, inciso I e §3º:
“Art. 256. A citação por edital será feita:
I – quando desconhecido ou incerto o citando;
§ 3º O réu será considerado em local ignorado ou incerto se infrutíferas as tentativas de sua localização, inclusive mediante requisição pelo juízo de informações sobre seu endereço nos cadastros de órgãos públicos ou de concessionárias de serviços públicos.”
Assim, tendo em vista que essa modalidade não é efetiva na maior parte dos casos, poderia ser formulada uma interpretação na qual a notificação por edital ocorreria após o esgotamento de outros meios possíveis de notificação, como a notificação na pessoa do sócio.
Em outras palavras, à parte autora (reclamante) incumbiria o encargo de demonstrar, de forma objetiva, a impossibilidade de a notificação ser encaminhada pelo correio, acostando documentos constitutivos do empregador de domínio público e acesso gratuito. Cita-se, a título de exemplo, o Comprovante de Inscrição e de Situação Cadastral da Pessoa Jurídica emitido pelo sítio eletrônico da Receita Federal (“cartão CNPJ”), bem como as Fichas Cadastrais perante as Juntas Comerciais.
Da Execução Definitiva
Característica ímpar do sistema recursal trabalhista é a ausência de efeito suspensivo dos recursos interpostos pelas partes, como regra geral, permitindo a execução provisória das decisões até a penhora (artigo 899 da CLT).
Quando não for mais possível o manejo de recursos em face da decisão de mérito, restará configurada a coisa julgada material (artigo 502 do CPC), tornando definitiva a execução das obrigações reconhecidas em Juízo e impedindo o conhecimento de questões já decididas (artigo 836 da CLT).
Em outras palavras, com o trânsito em julgado da condenação e a conversão da execução provisória em definitiva não poderão ser renovadas discussões a respeito das prestações postuladas na petição inicial, tampouco de aspectos formais havidos durante o iter processual.
Do Vício de Citação por Edital – Do Enunciado
Tecidos esses breves esclarecimentos e estabelecidas as premissas acima, cumpre apresentar a seguinte situação:
O reclamante ingressa com ação trabalhista e o correio retorna a notificação inicial expedida à reclamada consignando “não atendido / mudou-se”.
Ato contínuo, o juízo defere a sua notificação por edital, apesar de a parte autora não ter diligenciado para demonstrar a incerteza e o desconhecimento quanto à localização da empregadora.
A reclamação trabalhista prossegue à revelia da reclamada com a procedência dos pedidos, expedindo-se a notificação por edital, nos termos do artigo 852 da CLT.
Transitada em julgado a condenação e não satisfeito o débito exequendo, o juízo determina a prática de atos executórios, penhorando numerário contido em conta bancária de titularidade da empregadora – momento no qual ela toma ciência do processo e atravessa petição, arguindo vício de citação e pretendendo a declaração da nulidade processual.
Contudo, considerando que as matérias de defesa na fase de execução – após a constrição patrimonial – cingiriam àquelas tratadas no artigo 884, §1º, da CLT; quais sejam: (1) alegações de cumprimento da decisão; (2) quitação do débito; e (3) prescrição da dívida; bem como a imutabilidade da coisa julgada (artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal), a nulidade arguida restaria rejeitada pelo juízo.
Eis então a indagação formulada no presente artigo: não poderia a reclamada, no seio dessa reclamatória, invocar o vício de notificação inicial ainda que em sede de execução definitiva? A única medida processual cabível para impugnar essa nulidade seria a ação rescisória, impondo à empregadora o ônus de recolher o depósito prévio de 20% do valor da causa? Além de formular pedido de tutela de urgência cautelar, a fim de evitar a liberação do valor bloqueado?
Com todo o respeito aos entendimentos em sentido contrário, entende-se sim pela possibilidade de a parte impugnar o vício de notificação inicial e o juízo declarar a nulidade nos próprios autos da ação trabalhista, ainda que esteja tramitando na fase de execução.
Recorda-se que o defeito de citação é uma matéria de ordem pública por constituir requisito indispensável para a regular formação do processo, entendendo a doutrina como um pressuposto de existência da relação processual[3], nos termos dos artigos 239, caput, e 337, inciso I, do CPC.
Se a notificação por edital não observa as prescrições legais – rememorando a situação fática delineada neste artigo –, a sua nulidade é explicitamente reconhecida pela ordem jurídica (artigo 280 do CPC).
Por conseguinte, o vício de citação macula a própria constituição da lide, de sorte que referido ato traz manifesto prejuízo à reclamada, incidindo o artigo 794 da CLT.
Acrescenta-se que os preceitos atinentes à notificação inicial se constituem em desdobramentos dos pilares da legalidade e do devido processo legal, viabilizando que o réu seja cientificado da ação e possa apresentar a sua resposta, exercitando o seu direito à ampla defesa e ao contraditório, nos termos do artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal.
Em adição, importante lembrar que a própria CLT reconhece a inexigibilidade do título judicial fundada em aplicação incompatível com o texto constitucional (artigo 884, §5º), hipótese que se amolda à problemática formulada; afinal, a nulidade em questão está vinculada à própria formação válida da relação processual em estrita colisão ao devido processo legal.
Dessa forma, por se tratar de um pressuposto que permitirá a constituição válida e regular da ação, o vício de citação (notificação inicial) pode ser arguido, analisado e julgado mesmo na fase de execução definitiva, de modo que nem mesmo o trânsito em julgado da decisão prolatada na fase de conhecimento convalidaria o vício em apreço.
Em razão de referida questão ser debatida mesmo após a formação da coisa julgada nos próprios autos do processo – sem que seja necessário o ingresso de ação rescisória – referido vício pode receber o qualificativo de “vício transrescisório”, como têm entendido o TST[4] e o TRT da 22ª Região[5].
Portanto, considerando que o vício de citação por edital impede a participação da reclamada no processo em toda a fase cognitiva, pode-se sustentar que nem mesmo o trânsito em julgado da decisão condenatória afasta a possibilidade de referido defeito ser reconhecido pelo juiz do trabalho.
[1] SCHIAVI, Mauro. Manual de direito processual do trabalho. 15. ed. São Paulo: LTr, 2018. p. 508.
[2] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. São Paulo: EDIPRO, 2011. p. 35.
[3] GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil. Volume I. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 118.
[4] Cita-se o processo de relatoria do Ministro Cláudio Brandão – Proc. 107400-09.2006.5.02.0026. Publicado em 22/05/2015.
[5] Destaca-se a ação de relatoria do Desembargador Fausto Lustosa Neto – 00000711-31.2015.5.22.0102. Publicado em 31/07/2018.