Direitos de guarda, visita e custeio de despesas dos animais de estimação
A vida, na sua essência, é marcada por múltiplos afloramentos de sentimentos, emoções e sensações, de traços marcantes no meio ambiente em que se vive, às vezes tomados por paixões amorosas, avassaladoras, ou por vezes manifestadas por impulsivas ideologias do ódio, aberrações extremadas, de apreço ao vazio. Tudo isso que, em sua grande maioria, era visível tão somente nas relações humanas. Quando, por vezes, eram perceptíveis no mundo animal, eram sempre negligenciadas; da mesma forma quando presentes nas matas e vegetações. O homem chora de amores e ressentimentos, na fauna os animais sentem dores, emoções, alegrias e tristezas. Na flora, a vegetação se transforma o tempo todo, de acordo com as estações do ano. Há tempos, por exemplo, de primavera, em que os ipês colorem a natureza, com suas cores policromas, amarelas, brancas ou lilases, a encantar os corações dos mais apaixonados, riscando de beleza os jardins, os campos, as florestas, as margens das rodovias por onde se passam. Os sabiás e pintassilgos, canários e pardais, pulando de galho em galho, mais parecem uma orquestra sinfônica a entoar seus cantos afinados. Tudo isso é manifestação de vida, de existência planetária e, indubitavelmente, deve ser protegido por aqueles que gozam de maior poder de transformação e domínio: o homem. Por certo, o único pecado gravíssimo da natureza talvez seja o fato de os animais confiarem cegamente nas ações do homem; este sim, totalmente imprevisível, desalmado, interesseiro, costumeiro agente de suas conveniências, necessidades, principalmente econômicas. Uma vez humano, amoroso, gentil e confiável; e outras tantas, desumano, traiçoeiro, hipócrita, calculista e politicamente danoso. (Prof. Jeferson Botelho)
RESUMO. Versa o presente texto de reflexões jurídicas visando analisar a guarda dos animais de estimação nos casos de dissolução litigiosa da sociedade e do vínculo conjugal entre seus possuidores.
Palavras-chave. Separação; judicial; guarda; animais; estimação.
LINHAS INTRODUTÓRIAS
A dissolução litigiosa da sociedade e do vínculo conjugal, sempre esteve presente na sociedade moderna, notadamente, após a Emenda Constitucional nº 09, de 28 de junho de 1977, quando se autorizou o divórcio no Brasil.
É certo que até pouco tempo não se tinha dimensão das consequências deletérias provocada por uma ruptura dos laços conjugais, além dos traumas enfrentados pelo casal, como guarda de filhos, pagamento de pensão alimentícia, direito de visitação, partilhas de bens, e muitos outros.
Como a vida é sempre mais rica que a previsibilidade normativa, a dinâmica social provoca profundas transformações sociais, cabe ao legislador disciplinar as relações sociais a partir do modelo de vida adotado pela sociedade.
E tudo se conspira para as profundas mutações sociais. a inovação tecnológica, as mudanças de culturas, formas de comportamento, modelos e costumes diários, narrativas antagônicas em diversos pontos de vista, operando uma insofismável e verdadeira engenharia cultural para se adaptar as transformações sociais.
A nova discussão social passa pelo enfrentamento do dever de cuidado com os animais não humanos, antes vistos como simples bem semovente, mas hoje encarados como legítimos sujeitos de direito. É claro que essa mudança da nova forma de enxergar os animais não mais como mera coisa, mas como sujeitos de direitos sui generis, passa por profundas mudanças no hábito comportamental, exigindo a necessária modificação no ordenamento jurídico, quando se passa a enxergar os animais não humanos como seres sencientes, aqueles dotados de inúmeros sentimentos, como amor, dor, alegria, tristeza, além de tantos outros.
De tão importante a temática que hodiernamente tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 62, de 2019, proposta que visa estabelecer regras para a guarda de animais em casos de divórcio. Não se pretende exaurir todo o assunto em testilha, mas apenas oferecer algumas reflexões à sociedade brasileira para o aprimoramento das relações naquilo que se convencionou a chamar-se de famílias multiespécies, aquela formada não somente por seres humanos, mas também por membros de outras espécies, como cães, gatos, coelhos etc.
A PROPOSTA DO PROJETO DE LEI Nº 62, DE 2019 E SUAS INOVAÇÕES
Nesse sentido, tramita-se no Congresso Nacional o Projeto de Lei em epígrafe, de autoria de um parlamentar mineiro. Como era de se esperar a proposta normativa passa por profundas discussões no parlamento, mas inexoravelmente deve receber eco para a sua aprovação diante do inevitável interesse social e jurídico para a sua aprovação.
Na justificativa apresentada ao Projeto de Lei, o Deputado federal FRED COSTA, autor do Projeto pontua que o rompimento da sociedade conjugal ou da união estável é um momento muito difícil para um casal, na medida em que surgem inúmeras controvérsias quanto à divisão dos bens, guarda e visitação dos filhos, obrigação de alimentar e, em algumas situações, a posse de animais domésticos. Assevera ainda que não são poucos os casos em que esses animais de estimação são criados quase como filhos pelo casal, cuja separação, sendo litigiosa, submete ao Poder Judiciário a decisão sobre as matérias em que não haja consenso.
Destarte, o parlamento descreve com acerto sobre a necessidade de aprovação, cujos argumentos são utilizados para convencer seus pares na aprovação.
“(…) A proposição em tela consiste em reapresentação do Projeto de Lei de Nº 1.365 de 2015, do nobre Deputado Ricardo Tripoli, inclusive conservando a justificativa do autor originário, a quem louvo pelo PL, mas com uma pequena alteração de mérito. O rompimento da sociedade conjugal ou da união estável é um momento muito difícil para um casal, na medida em que surgem inúmeras controvérsias quanto à divisão dos bens, guarda e visitação dos filhos, obrigação de alimentar e, em algumas situações, a posse de animais domésticos. Não são poucos os casos em que esses animais de estimação são criados quase como filhos pelo casal, cuja separação, sendo litigiosa, submete ao Poder Judiciário a decisão sobre as matérias em que não haja consenso. Nesses casos, o pet é incluído no rol dos bens a serem partilhados de acordo com o que ditar o regime de bens do casal. Infelizmente nossa lei considera o animal como objeto, o que inviabiliza um acordo sobre as visitas na disputa judicial. Os Estados Unidos é o país com a maior população de animais de estimação e está mais avançado nessa questão, matéria esta incluída na área do “Direito dos Animais”. Há estados com legislação específica em que se determinam critérios para a resolução dos processos perante os tribunais. Os animais não podem ser mais tratados como objetos em caso de separação conjugal, na medida em que são tutelados pelo Estado. Devem ser estipulados critérios objetivos em que se deve fundamentar o Juiz ao decidir sobre a guarda, tais como cônjuge que costuma levá-lo ao veterinário ou para passear, enfim, aquele que efetivamente assista o pet em todas as suas necessidades básicas. Diante do exposto e em face da importância da matéria, peço o apoio dos ilustres membros desta Casa para a aprovação do Projeto de Lei em tela(…)”
A seguir, torna-se importante analisar os comandos normativos que passarão a fazer parte do ordenamento jurídico pátrio, em caso de aprovação.
Desta feita, o Projeto de Lei em testilha, dispõe sobre a guarda dos animais de estimação nos casos de dissolução litigiosa da união estável hetero ou homoafetiva e do vínculo conjugal entre seus possuidores.
Assim, decretada a dissolução da união estável hetero ou homoafetiva, a separação judicial ou o divórcio pelo juiz, sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos animais de estimação, será essa atribuída a quem demonstrar maior vínculo afetivo com o animal e maior capacidade para o exercício da posse responsável. Entende-se como posse responsável os deveres e obrigações atinentes ao direito de possuir um animal de estimação.
Propõe-se que o juiz deve observar e subsidiar-se da legislação vigente que regula a manutenção de animais silvestres nativos ou exóticos, domésticos e domesticados, tidos como de estimação. A norma prevê que a guarda dos animais de estimação classifica-se em:
I – unilateral: quando concedida a uma só das partes; ou
II – compartilhada, quando o exercício da posse responsável for concedido a ambas as partes.
A proposta traz importantes condições para o deferimento da guarda dos animais de estimação. Assim, para o deferimento da guarda do animal de estimação, o juiz deve observar as condições apropriadas, incumbindo à parte oferecer ambiente adequado para a morada do animal, disponibilidade de tempo, condições de trato, de zelo e de sustento, o grau de afinidade e afetividade entre o animal e a parte, demais condições que o juiz considerar imprescindíveis para a manutenção da sobrevivência do animal, de acordo com suas características.
A proposta legislativa traz a dinâmica da audiência judicial, devendo o juiz informar às partes, na audiência de conciliação, a importância, a similitude de direitos, deveres e obrigações a estes atribuídos, bem como as sanções nos casos de descumprimento de cláusulas, as quais serão firmadas em documento próprio juntado aos autos.
Lado outro, para estabelecer as atribuições das partes e os períodos de convivência com o animal sob a guarda compartilhada, o juiz poderá basear-se em orientação técnico-profissional para aplicação ao caso concreto.
Na guarda unilateral, por sua vez, a parte a que não esteja o animal de estimação poderá visitá-lo e tê-lo em sua companhia, podendo, ainda, fiscalizar o exercício da posse da outra parte, em atenção às necessidades específicas do animal, e comunicar ao juízo no caso de seu descumprimento.
Importante ressaltar que a alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado das cláusulas da guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, bem como a perda da guarda em favor da outra parte.
Se o juiz verificar que o animal de estimação não deverá permanecer sob a guarda de nenhum de seus detentores, deferi-la-á pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, consideradas as relações de afinidade e afetividade dos familiares, bem como o local destinado para manutenção de sua sobrevivência.
Discussão que traz grandes celeumas é a questão da alienação de animais e seus filhotes. Inicialmente, o texto prevê que nenhuma das partes poderá, sem a anuência da outra, realizar cruzamento, alienar o animal de estimação ou seus filhotes advindos do cruzamento, para fins comerciais, sob pena de reparação de danos. Os filhotes advindos do cruzamento dos animais de estimação a que fazem jus as partes, deverão ser divididos em igual número, quando possível. A parte que contrair nova união não perde o direito de ter consigo o animal de estimação, que só lhe poderá ser retirado por mandado judicial, provado que não está sendo tratado convenientemente ou em desacordo com as cláusulas, conforme despacho do juiz. Havendo motivos justos, poderá o juiz, com cautela e ponderação, fazer uso de outras medidas não tratadas na Lei, a bem dos animais de estimação.
De tão relevante o tema que ATAÍDE JÚNIOR, ressalta a importância de uma legislação específica e apropriada para tratar desses assuntos emergentes. Assim, com acerto o excelso jurista assegura:
É um projeto que trata não de direito ambiental, e sim do direito animal: o pet (animal de estimação, na tradução do termo em inglês) é protagonista e sujeito de determinados direitos fundamentais. É isso que está em jogo. Existem juízes que têm o pensamento mais conservador e que não enxergam o animal de estimação como sujeito de direitos, e sim como um bem, uma coisa. Então, é preciso ter uma lei para que eles não façam interpretações diferentes. Os animais merecem consideração e respeito. Eles não podem ser tratados como coisas. Hoje, utilizamos o termo família multiespécie, que é aquela formada não somente por seres humanos, mas também por membros de outras espécies, como cães, gatos, coelhos etc.[1]
Sobre a venda do animal após a separação, o insigne lente defende:
Não se pode conceber que um filho ou que um membro da família possa ser objeto de alienação (venda), de testamento. A partir do momento que se aplicam institutos da regulação humana, não se pode aplicar institutos do direito de propriedade. Então, nos parece que, especialmente em relação a pets, a alienação deve ser afastada.[2]
REFLEXÕES FINAIS
Após exposição fática de uma nova tendência social, é momento de apresentar as considerações finais, tendentes a contribuir para a promoção de direitos humanos e aprimoramento da legislação pátria. O mundo é uma nuvem em constante movimento. Num pistar de olhos tudo se transforma. Ninguém pode duvidar que vivemos numa sociedade verdadeiramente líquida, nada é palpável, tudo muda numa velocidade do vento ou de uma luz.
Quanto menos se espera o raio já passou, a história foi escrita, um arrebol se formou, a nuvem mudou de posição, sendo a vida um sopro, algo efêmero, fugaz, sendo correto afirmar que muito tempo atrás o poeta Beto Guedes do norte de Minas, em canção do Novo Tempo já afirmava:
Quem perdeu o trem da história por querer
Saiu do juízo sem saber
Foi mais um covarde a se esconder
Diante de um novo mundo
Estamos num novo tempo, um mundo diferente, surreal, mergulhados em raízes de nova geração, profundas mudanças, mutações diárias, um novo mundo, e quem ousar a discordar estará condenado a viver nas sombras do passado, nas vielas das trincheiras, nos escombros dos museus.
Nessa toada, pede-se licença para afirmar que os animais não humanos deixaram de constituir-se numa mera coisificação para se transformarem em sujeitos de direito. Pronto, falei!
E assim, cabe a sociedade tão somente proteger os direitos dos animais, sem murmúrios, sem embaraços, e todos, indistintamente, devem lutar para esquadrinhar todas as formas de agressões e maus-tratos, inclusive, cabe afirmar que maltratar animais constitui crime previsto no artigo 32 da Lei nº 9.605, de 1998, e quando praticado contra gatos e cachorros torna-se a conduta inafiançável para a providência profissional da autoridade policial, que não poderá arbitrar fiança durante a lavratura de auto de prisão em flagrante delito, não havendo possibilidade do agressor sair pela porta da frente da Delegacia de Polícia.
Como se percebe, de acordo com a proposta legislativa a guarda poderá ser compartilhada ou unilateral, neste caso, a parte a que não esteja o animal de estimação poderá visitá-lo e tê-lo em sua companhia, podendo, ainda, fiscalizar o exercício da posse da outra parte, em atenção às necessidades específicas do animal, e comunicar ao juízo no caso de seu descumprimento.
Como sujeito de direitos, em casos de separação ou divórcio, o juiz deve decidir sobre a modalidade da guarda, se compartilhada ou unilateral, o direito de visitação, a definição sobre a responsabilidade dos custeios nas despesas do animal, e todos os direitos inerentes aos animais, preconizados na Convenção de Bruxelas de 1978, como o respeito dos homens pelos animais, a necessidade que a educação tem de ensinar desde a infância a observar, a compreender, a respeitar e a amar os animais, e mais que isso, é importante deixar bem claro que todos os animais nascem iguais diante da vida, e têm o mesmo direito à existência; não esquecer que cada animal tem direito ao respeito, a proteção, a ser tratado com dignidade, e assim, o homem, enquanto espécie animal, não pode atribuir-se o direito de exterminar os outros animais, ou explorá-los, violando esse direito. É cláusula geral e imperativa, de que todo ser humano tem o dever inescusável de colocar a sua consciência a serviço dos outros animais.
Por fim, é possível afirmar seguramente que a Convenção de Bruxelas de 1978 garante o direito à existência dos animais; por sua vez, a Constituição Federal de 1988 igualdade tutela o direito à vida, e assim, sendo a vida protegida na sua plenitude, na esfera nacional e internacional, elevada à categoria de direto natural, nem mesmo a inexistência de leis, afastaria a plena proteção do direito de vida dos animais.
Nesse sentido pode-se afirmar categoricamente que com ou sem leis, deve o sistema de justiça garantir a proteção integral dos direitos dos animais em casos de dissolução da sociedade conjugal, e em quaisquer outros ramos do direito, devendo a norma proteger todos os direitos dos animais porque a magnitude da vida e da existência deve figurar como primazia nas relações sociais, sejam na defesa dos seres humanos ou na proteção dos animais não humanos.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 9.605, de 98. Lei dos Crimes Ambientais. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm. Acesso em 14 de outubro de 2022.
CONVENÇÃO DE BRUXELAS. Declaração Universal dos Direitos dos Animais – Unesco – ONU (Bruxelas – Bélgica, 27 de janeiro de 1978). Disponível em https://wp.ufpel.edu.br/direitosdosanimais/files/2018/10/DeclaracaoUniversaldosDireitosdosAnimaisBruxelas1978.pdf. Acesso em 14 de outubro de 2022.
JORNAL O TEMPO. Lei sobre cuidados com Pet em caso de separação avança no Congresso. Disponível em https://www.otempo.com.br/super-noticia/lei-sobre-cuidados-com-pet-em-caso-de-separacao-avanca-no-congresso-1.2749252. Acesso em 14 de outubro de 2022.
PROJETO DE LEI Nº 62/2019. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01ouxwc5mwij34127bh1xyihc862237328.node0?codteor=1706878&filename=PL+62/2019. Acesso em 14 de outubro de 2022.
[1] JÚNIOR. Ataíde Vicente. Juiz federal, professor de direito ambiental da Universidade Federal do Paraná e autor de livros sobre o tema. Minientrevista concedida ao Jornal O Tempo. Lei sobre cuidados com pet em caso de separação avança no Congresso. Publicação em 14/10/2022.
[2] JÚNIOR (2022)