Ação penal e justa causa laboral: a ilegalidade da dispensa motivada antes do trânsito em julgado da condenação à privação de liberdade do empregado

Presidiário de roupa laranja olhando pela janela de sua cela
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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a regra contida na alínea “d” do artigo 482 da CLT, tendo em vista que a interpretação literal e teleológica do dispositivo reconhece a dispensa por justa causa somente após o trânsito em julgado de ação penal que resulte em encarceramento do empregado. Contudo, lamentavelmente, observa-se na prática trabalhista que os empregadores, diante de uma ação penal em curso contra algum de seus empregados, se antecipam ao decreto condenatório, o condenando (sem qualquer prova de dolo ou culpa) à pena máxima prevista na norma trabalhista, que é a despedida por justa causa. Tendo em vista que a Justiça do Trabalho não se constitui em longa manus da justiça comum, o artigo pretende levantar argumentos principiológicos, legais, convencionais e doutrinários para sustentar a ilegalidade de tais práticas. Para tanto, foi realizada pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, com abordagem qualitativa, por meio de análise de doutrinas, artigos científicos, bem como de recentes julgados no assunto.

Palavras-chave: Despedida motivada. Justa causa. Condenação criminal. Presunção de inocência.

Introdução

Se o princípio da continuidade informa que “o contrato de trabalho é um negócio jurídico de extrema vitalidade, de uma grande dureza e resistência em sua duração” (RODRIGUEZ, 2000, p. 243) a despedida motivada configura exceção nas relações trabalhistas.Nesse sentido, as hipóteses de resolução do contrato (rescisão ou extinção por iniciativa do empregador) são taxativamente estabelecidas no art. 482 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Dentre as opções de despedida por justa causa,está a condenação criminal do empregado, prevista na alínea ‘d” do referido artigo, que autoriza a demissão quando o ilícito praticado pelo empregado resultar em ação penal com sentença condenatória transitada em julgado.

Na prática, os desdobramentos de uma ação penal sobre a relação trabalhista variarão conforme o caso em concreto, por exemplo, quando a condenação criminal tiver relação direta com o contrato de emprego. Outra situação possível é relacionada a ato ilícito que, embora não envolva a relação de emprego, interfere diretamente nela, obstando o seu seguimento em razão da prisão, por exemplo.

No entanto, o art. 482, alínea “d” da CLT ressalva a hipótese de demissão por justa causa quando houver suspensão da execução penal, uma vez que tal situação não impediria materialmente a continuidade do contrato de trabalho, afastando, assim, a motivação da despedida. Nesse sentido, a interpretação literal da lei configura-se como uma condicionante para a ruptura do pacto trabalhista.

Lamentavelmente, a prática tem revelado que, muitas vezes, o empregador,como que imbuído do poder punitivo estatal e vendo-se como um “braço” da ação penal (que muitas vezes não ultrapassou sequer a fase de conhecimento), se antecipa ao decreto condenatório e condena o empregado – sem qualquer prova de dolo ou culpa, à pena máxima prevista na norma trabalhista, que é a despedida por justa causa.

Como se percebe, a legislação laboral, em obediência ao princípio constitucional de presunção de inocência[1], não prevê a possibilidade de nova punição por eventual crime, tampouco é “braço da justiça comum” ao punir empregados que eventualmente possam ter cometido crime. A lei obreira apenas autoriza a rescisão por justa causa em razão do empregado não ter a possibilidade de prestar fisicamente o serviço.

Tendo em vista que a interpretação literal e teleológica do art. 482, alínea “d”, da CLT reconhece a dispensa por justa causa somente após o trânsito em julgado de ação penal que resulte em encarceramento, o presente trabalho pretende ilustrar de que maneira o dispositivo deve ser aplicado nas hipóteses de constrangimento penal que importe em encarceramento.

Para o alcance do objetivo pretendido, foi utilizada uma metodologia bibliográfica e jurisprudencial, com abordagem qualitativa de pesquisa, na qual foi realizada análise de doutrinas e artigos jurídicos no tema, bem como de julgados obtidos no repositório autorizado dos Tribunais Superiores- “Magister Net”.

 

1. RELAÇÃO DE TRABALHO E O PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DO CONTRATO LABORAL

Se a resolução do contrato de emprego é exceção, o princípio da continuidade é a regra na medida em que “visa atribuir à relação de emprego a mais ampla duraçãopossível, sob todos os aspectos” (RODRIGUEZ, 2004, p. 244) gerando projeções favoráveis aos empregados como a preferência pelos contratos de duração indefinida e a resistência em admitir a rescisão unilateral do contrato por vontade patronal e sem justa causa.

Pelo princípio da continuidade da relação de emprego, os fatos ordinários são presumidos, em detrimento dos fatos extraordinários que precisam ser provados, máxima difundida pelo doutrinador italiano Nicola Framarino dei Malatesta. (MALATESTA, 2001). Da mesma forma, o princípio sugere ausência de intenção do empregado em pôr fim ao contrato, presumindo-se sempre que a terminação do vínculo se dá por vontade do empregador e sem justa causa.

 O resultado jurisprudencial do conceito da continuidade pode ser observado na Súmula 212 do Tribunal Superior do Trabalho. Segundo Maurício Godinho Delgado,o preceito sumular

faz presumida a ruptura contratual mais onerosa ao empregador (dispensa injusta), caso evidenciado o rompimento do vínculo; coloca, em consequência, sob o ônus da defesa, a prova de modalidade menos onerosa da extinção do contrato (pedido de demissão ou dispensa por justa causa, por exemplo). Faz presumida também a própria continuidade do contrato, lançando ao ônus da defesa a prova da ruptura do vínculo empregatício, em contextos processuais de controvérsia sobre a questão (2009, p. 194)

Conclui-se, assim, que a despedida é via excepcional, na medida em que foge ao princípio formador do negócio jurídico que é a continuidade.

1.1 A vedação da dispensa arbitrária

A continuidade da relação de emprego visa a observar a proteção ao emprego que se subdivide em duas vertentes. Uma relacionada às políticas públicas que visem, por exemplo, à garantia do pleno emprego, valorização do salário, novos postos de trabalho, dentre outras. Outra vertente é diretamente relacionada ao contrato de emprego, com medidas que visem garantir a permanência do empregado o que se dá por meio de regras de limitação e contingênciada rescisão por iniciativa do empregador.

Essas limitações ao direito potestativo em sentido amplo,muito embora não proíbam, estabelecem uma compensação pela despedida imotivada. São exemplos a multa do FGTS, o aviso prévio, etc. Já as limitações em sentido estrito apresentam-se por meio da proibição de dispensar ou da exigência de motivação.

Assim, pode-se dizer que o trabalho é dotado de valor social e econômico, o que levou o constituinte de 1988 a tratá-lo como fundamento do Estado Democrático de Direito, assim como a dignidade da pessoa humana. E por estarem dispostos no título II, capítulo II, da CF/88 os direitos sociais trabalhistas são tratados como fundamentais pois assim foram definidos pelo constituinte originário.

 Ingo Sarlet preleciona que

Nesse contexto, convém relembrar desde logo, que ao positivar uma série de princípios fundamentais, a CF, no dispositivo que elenca os assim chamados fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito (artigo 1º), previu os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa no mesmo inciso (IV) e com a mesma relevância e hierarquia axiológica, evidenciando um compromisso com a simetria entre capital e trabalho, no mínimo, contudo, espancando qualquer leitura parcial e sectária. Dito de outro modo, eventual priorização da dignidade da pessoa humana, prevista expressamente no inciso anterior (Artigo 1º, III), não poderá justificar negativa de condição de preceito fundamental seja os valores sociais do trabalho, seja no que diz com a própria iniciativa que, ademais, juntamente com a valorização do trabalho humano e a busca pelo pleno emprego, volta a ser objeto de expressa menção no âmbito dos princípios de ordem econômica (artigo 170, caput e inciso VIII), numa articulação teológico-sistemática que haverá de ser permanentemente considerada pelo legislador e pelos interpretes e aplicadores da CF (2016, p. 33/34)

A continuidade da relação de emprego é, portanto, direito fundamental do empregado,reconhecida expressamenteno Brasil no artigo 7º, I da CF/88.

A divergência doutrinária em relação aos preceitos fundamentais expressos pelo legislador constituinte é o resultado do eterno debate entre capital e trabalho, tempo e remuneração, e remonta ao tempo do primeiro ato normativo editado pela OIT, a Recomendação 119 de 1963.

A recomendação já delineava a ideia de proteção contra a dispensa imotivada que influenciou mais de vinte países que passaram a exigir a justificação para rescisão contratual imotivada por iniciativa do empregador. Após dez anos da publicação da recomendação, quarenta e cinco países passaram a exigir a justificativa para dispensa imotivada dos quais citamos Alemanha, Bulgária, Congo, Cuba, Chile, Egito, Espanha, Finlândia, França, Índia, Itália, México e Noruega. Doze países instituíram recursos em caso de dispensa abusiva ou injustificada (citamos como exemplo Austrália e Bélgica) e três países (Grécia Polônia e Suíça) adotaram a como proteção ao emprego o conceito do abuso de direito (MONACO, 2014).

O princípio da proteção foi então observado pela Convenção nº 158 da OIT, que entrou em vigor no plano internacional em 23/11/1985, por meio da qual ficou estabelecida a exigência de justificativa para o término da relação de emprego relacionada com a capacidade ou conduta do empregado ou na necessidade de funcionamento da empresa, observando assim o equilíbrio entre capital e trabalho.

Dos trinta e seis Estados-Membros que ratificaram a Convenção 158 da OIT, apenas o Brasil a denunciou, enão havia como ser diferente. À época da aprovação da Convenção 158 da OIT (1982), sequer tínhamos a ainda recente CF/88.

O atraso na observância de direitos sociais pode ser visto em época ainda mais remota. Em 1888,enquanto o Brasil assinava a Lei Áurea (GOMES, 2019), em 1890 o governo norte americano era o primeiro país a declarar a jornada de trabalho limitada a oito horas (MARTINEZ, 2019, p. 401).

Muito embora a doutrina brasileira adote o Princípio da Continuidade da relação de emprego, sua aplicação é tímida, na medida em que sequer há regulamentação do disposto no inciso I do artigo 7º da Constituição Federal, tampouco do artigo 10 do ADCT, e ainda, considerando que as medidas atuais do governo visam a “estimular” a economia por meio do saque automático do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço- FGTS[2], o que nos permite afirmar que nosso ordenamento jurídico passa ao largo de todo e qualquer avanço de direitos sociais e, portanto, da própria sociedade, situação que nos força ao estudo detido das hipóteses de cessação do contrato de emprego por justa causa.

Como dito, trata-se de situação não só excepcional, como também constitui o amplo direito potestativo do empregador por ser ato unilateral e punitivo – sem direito a qualquer tipo de defesa do empregado celetista, permitindo a supressão de verbas que seriam devidas na rescisão imotivada –único resquício do princípio da continuidade da relação de emprego.

1.2 A justa causa como hipótese excepcional de cessação do contrato de trabalho

Sérgio Pinto Martins afirma que se o emprego das expressões resolução, resilição e rescisão é incerto e discutível entre os doutrinadores, mais confunde do que esclarece; deve ser abandonado (MARTINS, 2012). Já a CLT não faz distinções, utiliza o vocábulo “rescisão” como sinônimo de qualquer causa de dissolução dos contratos.  

Data máxima vênia, para a presente discussão, é de fundamental importância conhecer a denominação correta dos tipos de cessação do contrato de emprego para a compreensão do texto técnico, na medida em que cada uma das espécies de cessação conceitua o sujeito motivador da extinção contratual.

A cessação do contrato de emprego ocorre de duas formas. A primeira por via normal, ou seja, quando o contrato de emprego é extinto em decorrência do termo final ou pela obtenção dos propósitos contratuais. A segunda se dá de forma excepcional, quando o contrato de emprego é dissolvido prematuramente. Neste caso se o ato é imotivado de uma ou ambas as partes é chamado de resilição. Se o ato for motivado (faltoso) é chamado de resolução e se for decorrente de nulidade, chama-se rescisão.

Dá-se o nome de pedido de demissão quando a cessação do contrato de emprego parte de iniciativa do empregado e de despedida ou dispensa quando o ato parte de iniciativa do empregador.

Segundo Maurício Godinho Delgado, justa causa é o motivo relevante, previsto legalmente que autoriza a resolução do contrato. O ato culposo pode partir do empregado ou do empregador, ou seja, é conduta tipificada em lei que autoriza a resolução do contrato nesta modalidade (2009).

Amauri Mascaro Nascimento afirma que “considera-se justa causa o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequência, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho” (1991, p. 191).

A normativa da justa causa é apresentada por meio de hipóteses de ato do empregado na forma do artigo 482 da CLT. Muito se discute na doutrina e jurisprudência se o rol de hipóteses que justificam a justa causa é taxativo (tipicidade legal) ou exemplificativo.

Delgado (2009) afirma que o direito do trabalho incorporou o princípio penal clássico de que não há infração sem previsão legal anteriormente expressa, contudo, mesmo à luz do critério taxativo, a legislação trabalhista não pode ser considerada tão rigorosa quanto à penal, na medida em que as hipóteses previstas no artigo 482 da CLT são plásticas e flexíveis, a exemplo, o mau procedimento previsto no item “b” do artigo 482 da CLT, o que nos permite dizer que os empregados são tratados não só de forma menos protetiva em relação os sujeitos da ação penal, como também de forma mais severa.

Tal fato é verificado no atual cenário jurídico-político, na medida em que,enquanto o Supremo Tribunal Federal proíbe a prisão sem o trânsito em julgado da sentença penal condenatória,há uma avalanche denominada “liberdade econômica”, composta por “reformas”previdenciária e trabalhista que, de forma árdua, defendem a supressão de direitos e garantias fundamentais dos trabalhadoressob o manto da afirmativa de serem essenciais ao crescimento econômico, como se este não necessitasse do paralelo crescimento social.

Assim, a lei permite por meio de um rol “taxativo” de hipóteses a despedida por justa causa do empregado quando este, no exercício do trabalho, violar deveres de conduta que podem ou não estar relacionados ao pacto laboral, mas que resultam na impossibilidade de manutenção do vínculo empregatício.

2.Trabalho e crime: a hipótese de dispensa motivada por condenação criminal do empregado

O artigo 482, alínea “d” da CLT de forma literal dispõe que a condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena, constitui justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador.

A aplicação ao contrato de emprego do “tipo” punitivo previsto pelo ordenamento trabalhista deve primeiro ser analisado sob o manto do princípio fundamental da presunção de inocência, dito de outro modo, para a aplicação da justa causa, deve-se ter como condição a existência de sentença penal condenatória transitada em julgado, sob pena de violação ao artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal.

Indispensável à análise da aplicação da justa causa é também a relação entre ato faltoso com o contrato de emprego, ou seja, se o ato ensejador da ação penal é ou não relacionado ao negócio jurídico mantido entre as partes.

A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho, no voto proferido pelo Ministro Vieira de Mello Filho no julgamento do agravo de instrumento em recurso de revista nº 373-66.2010.5.02.0465, afirma que, ainda que sobrevenha sentença penal condenatória transitada em julgado, nos casos em que o fato ensejador da condenação criminal não guarde relação direta com o contrato de trabalho, e constatado que o cumprimento da pena não interfere no ordinário cumprimento da atividade laboral, não se há de falar em justa causa, sob pena de ingerência da Justiça do Trabalho nas demais esferas de repercussão do ato ilícito. Vejamos:

AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. PROCESSO NÃO REGIDO PELA LEI Nº 13.015/2014 E SOB A ÉGIDE DO CPC/1973. DISPENSA POR JUSTA CAUSA. CONDENAÇÃO CRIMINAL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. TRÂNSITO EM JULGADO. REGIME SEMIABERTO. O art. 482, d, da CLT dispõe que constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador a condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena. Entretanto, em casos nos quais o fato ensejador da condenação criminal não guarde relação direta com o contrato de trabalho, constatada que o cumprimento da pena não interfere no ordinário cumprimento da atividade laboral, não se há de falar em justa causa, sob pena de ingerência desta Justiça nas demais esferas de repercussão do ato ilícito, ou ainda, de forma mais grave, sob pena de acolhimento de prática discriminatória no âmbito da relação de trabalho. EQUIPARAÇÃO SALARIAL. SÚMULA Nº 126 DO TST. Na hipótese, consoante fundamentos delineados pela instância ordinária, soberana no exame do conjunto fático-probatório dos autos, restou comprovado que o autor e o paradigma apontado exerciam as mesmas funções. Não foi produzida prova capaz de afastar a identidade de funções pretendida pelo autor. Na forma como posto, para se chegar a conclusão diversa no sentido de que as funções desempenhadas não eram idênticas, seria necessário o revolvimento do conjunto fático-probatório dos autos. Incide o óbice da Súmula nº 126 do TST. Agravo desprovido (TST; Ag-AIRR 0000373-66.2010.5.02.0465; Sétima Turma; Rel. Min. Vieira de Mello Filho; DEJT 13/12/2019; Pág. 4851).

            Ou seja, além do fato culposo ter que guardar relação com o contrato de emprego, é de suma importância para a aplicação da justa causa a espécie de constrição de liberdade imposta ao empregado, na medida em que apenas o encarceramento impede a prestação de serviços.

Assim, a previsão do artigo 482, d, da CLT, em sua interpretação teleológica, refere-se à inviabilidade da prestação de serviços em razão do empregado estar cumprindo pena privativa de liberdade, isto porque o que caracteriza a justa causa não é a condenação criminal com o transito em julgado, mas sim o encarceramento que importa na impossibilidade do empregado fisicamente prestar o serviço (SARAIVA; SOUTO, 2018, p. 233-234).

            Importante destacar ainda que, diferentemente da questão acima abordada, o simples encarceramento não torna lícita a despedida por justa causa. É que a prisão meramente provisória não extingue o contrato, embora inviabilize seu adimplemento pelo empregado, o que tem como consequência a suspensão do contrato de emprego na forma do artigo 472, caput e § 1º, combinado com o artigo 483, § 1º da CLT (DELGADO, 1991).

            Nesse sentido se posicionou recentemente o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região:

REVERSÃO DA DESPEDIDA POR JUSTA CAUSA EM DESPEDIDA IMOTIVADA. ABANDONO DE EMPREGO. PRISÃO PROVISÓRIA DO EMPREGADO. O abandono de emprego constitui justa causa para a rescisão contratual pelo empregador, sendo necessário, à sua configuração, a presença de dois elementos, quais sejam, o elemento objetivo – ausência ao trabalho por, pelo menos, 30 dias, conforme jurisprudência pátria; e o elemento subjetivo – ânimo de abandonar o emprego, manifestado pelo silêncio diante da ausência prolongada. Hipótese em que o trabalhador, por estar preso, esteve afastado do emprego por mais de 30 dias. Como a prisão provisória do empregado configura hipótese de suspensão do contrato de trabalho, por impossibilidade fática de prestação de serviços, não há falar em abandono de emprego, uma vez que ausente o ” animus abandonandi”. (TRT 4ª R.; RO 0021151-24.2017.5.04.0023; Sétima Turma; Rel. Des. João Pedro Silvestrin; DEJTRS 01/10/2018; Pág. 228).

No mesmo sentido decidiu o TRT da 10º Região, em decisão do ano de 2019:

JUSTA CAUSA. PRISÃO DE EMPREGADO. AUSÊNCIA DO ANIMUS ABANDONANDI. Não comprovada a intenção do empregado em abandonar o emprego, dado que o seu afastamento decorreu de seu aprisionamento, mantém-se a sentença quanto a reversão da justa causa aplicada. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. GRATUIDADE JUDICIÁRIA. ART. 791-A, § 4º, DA CLT. INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL. É inconstitucional a expressão. .. Desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa. .., do art. 791-A da CLT, devendo ser suspensa a exigibilidade dos honorários advocatícios, assim como afastada a sua compensação com outros créditos trabalhistas, quando se tratar de partes hipossuficiente (art. 5º, incisos II e LXXIV da CF). (Verbete nº 75/2019 do eg. Tribunal Pleno). (TRT 10ª R.; RORSum 0000191-78.2018.5.10.0012; Terceira Turma; Rel. Des. Ricardo Alencar Machado; DEJTDF 08/11/2019; Pág. 1037)

            Igualmente é hipótese de suspensão do contrato do emprego, e não de despedida por justa causa, o afastamento do cargo previsto na Lei 12.850/13, que trata do crime organizado. O Artigo 2º, § 5º, dispõe que “Se houver indícios suficientes de que o funcionário público integra organização criminosa, poderá o juiz determinar seu afastamento cautelar do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à investigação ou instrução processual”.

O dispositivo mais uma vez nos permite afirmar que tanto a lei penal, quanto a destinada ao empregado público, são mais brandas e protetivas em relação à legislação destinada aos empregados da iniciativa privada regidos pela CLT.

            A afirmativa pode ser vista em todos os tribunais, a exemplo do TRT da 4ª Região, em voto proferido também no ano passado:

CARRIS. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. DESPEDIDA POR JUSTA CAUSA. DIREITO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. INDEFERIMENTO DE PROVA TESTEMUNHAL. A dispenda de empregado público por justa causa não padece de vício por ausência de motivação, desde que a justa causa seja explícita, caracterizando-se como a própria motivação. Todavia, não tendo sido garantido o direito de defesa ao empregado no procedimento administrativo instaurado pelo empregado, deve-se oportunizar a produção de prova testemunhal na ação trabalhista que questiona a configuração da justa causa e a própria decisão do empregador de dispensar por justo motivo, sob pena de inviabilizar qualquer defesa e contraditório ao trabalhador. Recurso do reclamante provido para reconhecer a nulidade por cerceamento de defesa e determinar a reabertura da instrução, possibilitando a produção de prova testemunhal. (TRT 4ª R.; ROT 0020794-50.2017.5.04.0021; Décima Turma; Rel. Des. Janney Camargo Bina; DEJTRS 20/12/2019; Pág. 437)

Do exposto, é possível afirmar que a despedida por justa causa na hipótese do artigo 482, alínea “d” da CLT somente é possível quando o empregado condenado em ação penal transitada em julgado for recolhido ao sistema prisional, pois somente assim ficará impossibilitado fisicamente de prestar o serviço. Não se vincula, portanto, o ato faltoso praticado pelo empregado, objeto da ação penal, ao contrato de emprego, tampouco é lícito ao empregador aplicar nova punição por eventual crime cometido pelo empregado, sob pena de restarem violados princípios formadores do Estado Democrático de Direito.

2.1 O princípio da presunção de inocência

O princípio da presunção de inocência é inafastável ao estudo da justa causa fundada em sentença penal condenatória, na medida em que estão em discussão os limites do reconhecimento deste que é um verdadeiro direito fundamental, intimamente imbricado ao direito à liberdade e à dignidade humana.

A origem do reconhecimento da presunção de inocência remonta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, do séc. XVIII, que, em seu art. 9º, previa que “Todo homem será presumido inocente até que tenha sido declarado culpado”.

A evolução dos direitos do homem e do cidadão a partir de então ganha força no plano universal, com o progressivo empenho conjunto de inúmeros países que passaram a compor organismos internacionais., cujo objetivo era, primacialmente,  a manutenção da paz e da segurança internacionais; a limitação da soberania e a convivência comum necessária ao progresso da humanidade (FRANCO FILHO, 2013).

Nesse sentido, com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945 surgiu a Organização das Nações Unidas (ONU), em substituição à antiga sociedade das nações criada em 1919 pelo Tratado de Versalhes. Recém criada, a ONU representou a tentativa de diversos países de criar um ambiente de paz entre as nações, com especial interesse no fortalecimento dos direitos humanos, cujo principal documento é, sem dúvidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

O artigo XI da Declaração dispõe que “Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.

Com o mesmo espírito, em 1969 a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, ratificada pelo Brasil em 22 de novembro do mesmo ano, também estabelece que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa” (artigo 8º, 2).

No plano normativo interno brasileiro, a presunção de inocência está prevista no artigo 5º, LVII, e é garantia por meio de um enunciado negativo universal, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória” (SILVA, 2014, P. 158).

 Estabelecido no rol de direitos fundamentais, trata-se a presunção de inocência de “princípio reitor do processo penal e, em última análise, podemos verificar a qualidade de um sistema processual através do seu nível de observância (eficácia)” (LOPES JÚNIOR, 2011, p. 117).

Nesse parâmetro, a alínea “d” do artigo 482 da CLT somente pode ser lida de forma literal, na medida em que admitir a dispensa motivada sem o trânsito em julgado e sem a necessidade de encarceramento viola frontalmente os direitos fundamentais da pessoa humana, dentre eles o da presunção de inocência.

3. Considerações finais

 

Como visto, a prática trabalhista nos Tribunais tem revelado a conduta de muitos empregadores que, no intuito de imbuir-se do poder punitivo estatal, atuam como “braços” da ação penal e se antecipam ao decreto condenatório, sancionando o empregado à despedida por justa causa, quando sequer existe trânsito em julgado da sentença condenatória, ou seja, sem sequer ter se comprovado a responsabilidade penal.

Como se percebe, a legislação laboral, em obediência ao princípio constitucional de presunção de inocência, não prevê a possibilidade de nova punição por eventual crime, pelo contrário, a lei obreira apenas autoriza a rescisão por justa causa em razão do empregado não ter a possibilidade de prestar fisicamente o serviço.

Nesse sentido, a pura existência de ação penal, até mesmo quando há sentença penal condenatória decorrente de ilícito não relacionado ao contrato de emprego, não pode nele interferir, assim como não poderia interferir no contrato de emprego uma questão cível não relacionada ao objeto do contrato de emprego.

Portanto, para que seja lícita a despedida por justa causa decorrente de ação penal condenatória transitada em julgado, é necessário que a pena imposta seja de reclusão em regime fechado ou semiaberto, porque apenas tais modalidades de execução penal impossibilitam materialmente que o empregado preste o serviço objeto do contrato de emprego.

Assim, o reconhecimento formal do direito à presunção de inocência, cuja previsão ocorre não apenas no plano constitucional brasileiro, mas em maior medida no plano convencional interamericano e universal dos direitos humanos, impede que se interprete ampliativamente o conteúdo da regra prevista no artigo 482, “d”, da CLT.

 

4. Referências bibliográficas

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. CONVENÇÃO 158. 23 de novembro de 1985.Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_236164/lang–pt/index.htm. Acesso em 20 jan 2020.  

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 8 ed. São Paulo: Ltr, 2009, p. 194.

FRANCO FILHO, Georgenor de Souza. Dicionário Brasileiro de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2013.

GOMES, Laurentino. Escravidão– Vol. 1: Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro Globo Livros, 2019.

 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

 

MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2001.

MARTINS, Sérgio Pinto. Manual de direito do trabalho. São Paulo, Atlas, 2012.

 

MARTINEZ, Luciano. Curso de Direito do Trabalho. 10. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

 

MONACO, M. D. Suporte fático do direito fundamental ao trabalho (art. 7º, I, da Constituição): análise à luz do pensamento cepalino. 2014. 194 f. Dissertação (Mestrado em Direito)- Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação do Direito do Trabalho, 17 ed. São Paulo: LTr, 1991.

 

RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. 3. ed. atual. São Paulo: LTr, 2000.

 

RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios do Direito do Trabalho. 3.ed. São Paulo: LTr, 2004.

 

SARAIVA, Renato; SOUTO, Rafael Tonassi. Direito do Trabalho. Salvador: JusPodivm, 2018.

 

SARLET, Ingo Wolfgan. Os direitos dos trabalhadores como direitos fundamentais e a sua proteção na Constituição Federal Brasileira de 1988. In: Márcio Túlio Viana; Cláudio Jannotti da Rocha. (Org.). Como aplicar a CLT à luz da Constituição: Alternativas para os que militam no foro trabalhista – obra em Homenagem à Profa. Gabriela Neves Delgado. São Paulo/SP: LTr Editora, 2016, v. 01, p. 28-35.

 

SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2014.

 

 


[1]Art. 5º, LVII, da Constituição Federal de 1988: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

[2] Em verdade, o FGTS só passou a existir a partir da CF/88 quando, por meio da Assembléia Constituinte, veio substituir a decenal, resultam na total inaplicabilidade de qualquer garantia ou emprego ou observância ao princípio da continuidade da relação de emprego.

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