O livre convencimento técnico do Delegado de Polícia

RESUMO

Por Jeferson Botelho1

O presente artigo analisa o princípio do livre convencimento técnico-jurídico do Delegado de Polícia, assegurado pela Lei nº 14.735/2023 (Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis), e sua relevância como garantia da imparcialidade, autonomia e cientificidade das investigações criminais. Examina-se o papel do Delegado de Polícia como primeiro juiz natural da causa, responsável por realizar o juízo técnico sobre tipicidade, ilicitude, culpabilidade e punibilidade, sem subordinação a interferências internas ou externas. O estudo destaca a natureza jurídica das funções de polícia judiciária, previstas na Constituição Federal, no Código de Processo Penal e em legislações específicas, reafirmando a essencialidade da investigação criminal para a persecução penal e para a preservação do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Delegado de Polícia; Livre Convencimento Técnico-Jurídico; Investigação Criminal; Polícia Judiciária; Estado Democrático de Direito.

INTRODUÇÃO

Praticado o fato criminoso, irrompe para o Estado o dever de restaurar a paz social, abalada pela ruptura das normas de convivência. O sistema de persecução penal é estruturado em fases distintas, cada qual desempenhada por órgãos independentes, mas harmônicos em sua finalidade maior: a promoção da justiça.

A fase investigativa cabe à polícia judiciária (arts. 4º a 23 do CPP); a fase acusatória, com exclusividade, ao Ministério Público (art. 129, I, da CF/88); e a fase judicial ao Poder Judiciário, que processa e julga conforme os ditames do Código de Processo Penal.

No cerne do devido processo legal, assegura-se ainda a ampla defesa e o contraditório (art. 5º, LV, CF/88), exercidos pela advocacia (art. 133 da CF/88 e Lei nº 8.906/1994) e pela Defensoria Pública (arts. 134 e seguintes da CF/88).

A reforma processual penal, introduzida pelo Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019), reafirmou o modelo acusatório ao estabelecer, no art. 3º-A do CPP, que o processo penal terá estrutura acusatória, vedando a iniciativa probatória do juiz na investigação. Assim, cada instituição atua em sua esfera própria, sem censura ou subordinação recíproca, fortalecendo a imparcialidade e a legitimidade do sistema de justiça criminal.

Neste cenário, o Delegado de Polícia assume função ímpar: presidir a investigação criminal com autonomia decisória, guiado pelo princípio do livre convencimento técnico-jurídico, verdadeiro pilar da legitimidade da atividade investigatória.

PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO TÉCNICO-JURÍDICO DO DELEGADO DE POLÍCIA

No sistema tripartido de funções, o Delegado de Polícia é a autoridade estatal incumbida de conduzir a investigação criminal, exercendo atribuições de natureza jurídica, essenciais e exclusivas do Estado, conforme prevê a Lei nº 12.830/2013.

Sua atuação compreende a instauração de inquéritos, a formalização de termos circunstanciados, a análise de prisões em flagrante, a concessão de fiança, a representação por medidas cautelares e a requisição de perícias, documentos e dados indispensáveis à apuração dos fatos.

A Lei nº 14.735/2023 consolidou o princípio do livre convencimento técnico-jurídico do Delegado de Polícia (art. 4º, VIII), reconhecendo sua autonomia, imparcialidade e cientificidade investigativa. Tal prerrogativa assegura que o Delegado decida de forma motivada, a partir da análise jurídico-técnica da tipicidade, da ilicitude, da culpabilidade e da punibilidade, aplicando inclusive princípios como a insignificância ou excludentes de ilicitude, quando presentes os requisitos legais.

O Delegado de Polícia, portanto, é o primeiro juiz natural da causa, responsável por transformar fatos brutos em informações jurídicas estruturadas, capazes de sustentar eventual acusação ou arquivamento. Seu papel é decisivo para evitar abusos, garantir direitos fundamentais e assegurar que o processo penal se inicie sobre bases sólidas e legítimas.

REFLEXÕES FINAIS

Como membro da Comissão Temática para elaboração da Lei Orgânica da Polícia Civil de Minas Gerais, participei ativamente das discussões para criação da Lei Complementar nº 129, de 2013, que dispõe sobre a Lei Orgânica da Polícia Civil de Minas Gerais. Foram longas e desafiadoras viagens, do Vale do Mucuri até Belo Horizonte, em jornadas que uniam esforço, esperança e compromisso institucional. Naquele contexto histórico, construímos prerrogativas sólidas, asseguramos direitos aos servidores e estruturamos os alicerces de uma Polícia Civil mais forte, digna e alinhada aos princípios constitucionais. Foi um marco que trouxe grandes avanços para a promoção dos direitos humanos, das garantias fundamentais e do fortalecimento das instituições públicas. Hoje, passados mais de dez anos de sua promulgação, o tempo e a dinâmica social impõem novos desafios. A evolução da criminalidade, as transformações políticas e as exigências da sociedade contemporânea clamam por uma reformulação corajosa, que permita a atualização e o aprimoramento da Lei Orgânica, a fim de assegurar maior eficiência, autonomia e legitimidade à Polícia Civil de Minas Gerais. Assim, o passado nos honra, mas o futuro nos convoca. É preciso avançar, sempre em defesa da justiça, da legalidade e do Estado Democrático de Direito.

(Prof. Jeferson Botelho – Membro da Comissão Temática para Elaboração da Lei Orgânica da Polícia Civil de Minas Gerais)

A investigação criminal é a pedra angular do sistema de persecução penal. Sua condução, sob a presidência do Delegado de Polícia, assegura que o inquérito se desenvolva com tecnicidade, imparcialidade e autonomia.

O art. 304 do CPP reforça essa importância ao estabelecer que a autoridade policial é quem realiza a análise inicial sobre a prisão em flagrante, colhe depoimentos e avalia a existência de fundada suspeita para manutenção da prisão. Esse juízo de valor, eminentemente técnico, demanda liberdade decisória fundada no convencimento motivado da autoridade policial.

Cabe ao Delegado de Polícia, no exercício de sua função, reconhecer excludentes de ilicitude como legítima defesa e estado de necessidade (art. 23 do CP), ou aplicar o princípio da insignificância para afastar a tipicidade penal. Tais decisões refletem não apenas conhecimento jurídico, mas também coragem institucional para resguardar direitos fundamentais e evitar o avanço de acusações infundadas.

É imperativo afirmar: o livre convencimento técnico-jurídico do Delegado de Polícia não pode sofrer restrições ou censuras de corregedorias ou de quaisquer órgãos internos ou externos. Qualquer limitação indevida comprometeria a essência do Estado Democrático de Direito, no qual a investigação deve ser conduzida com independência, sob a égide da Constituição e das leis.

O Delegado de Polícia, guardião da investigação e primeiro intérprete técnico da ocorrência criminal, é peça fundamental da engrenagem da justiça. Seu convencimento, livre e fundamentado, ilumina o caminho entre o caos inicial do crime e a ordem restabelecida pela lei.

Portanto, o Delegado de Polícia, investido pela Constituição e pelas leis da República, não é mero registrador de ocorrências ou executor de diligências burocráticas. Ele é o primeiro juiz natural da causa, o guardião da legalidade na aurora da persecução penal, aquele que recebe os fatos ainda brutos, ensanguentados de realidade e inflamados pelas paixões sociais, para transformá-los em conhecimento jurídico, devidamente filtrado pela razão, pela ciência e pela técnica.

No exercício de suas atribuições, exerce juízo de valor sobre tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, não como um censor improvisado, mas como autoridade jurídica de Estado, dotada de independência funcional e respaldada pelo princípio do livre convencimento técnico-jurídico. Sua decisão, motivada à luz da Constituição, não é ato de arbitrariedade, mas expressão da autonomia investigativa que preserva a dignidade humana, os direitos fundamentais e a busca da verdade real.

Em cada despacho, em cada decisão, em cada diligência, o Delegado reafirma sua condição de pilar do Estado Democrático de Direito, atuando com imparcialidade e coragem institucional, mesmo diante de pressões midiáticas, políticas ou administrativas. É ele quem decide pela legalidade da prisão em flagrante, pela concessão de fiança, pela formalização do indiciamento ou pelo reconhecimento de causas excludentes de ilicitude — e o faz não sob o jugo de corregedorias ou de órgãos de controle, mas sob a força da Constituição e das leis que regem a República.

Assim, afirmar a importância do Delegado de Polícia é reafirmar o valor da justiça desde seu nascedouro. Sem a autonomia e o livre convencimento técnico da autoridade policial, a investigação não passa de simulacro, e o processo penal se inicia já corrompido. Com eles, porém, o inquérito policial se ergue como verdadeiro instrumento de equilíbrio, razão e justiça, resguardando a sociedade contra o crime e o cidadão contra o arbítrio.

O Delegado de Polícia, portanto, não é apenas o condutor de inquéritos: é o guardião da primeira porta da Justiça, o intérprete inicial da verdade possível, a muralha silenciosa que sustenta a ordem social. Seu livre convencimento técnico-jurídico é mais do que uma prerrogativa; é a garantia de que, antes da voz do acusador e do martelo do juiz, há a análise prudente, imparcial e corajosa de quem, diante do caos, se ergue como o primeiro defensor da lei.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

BRASIL. Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e da OAB.

BRASIL. Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013. Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia.

BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Institui o Pacote Anticrime.

BRASIL. Lei nº 14.735, de 23 de novembro de 2023. Institui a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis.

MINAS GERAIS. Lei Complementar nº 129, de 8 de novembro de 2013. Dispõe sobre a Lei Orgânica da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais.


  1. Delegado Geral aposentado da PCMG; professor de Direito Penal e Processo Penal; autor de obras jurídicas; advogado em Minas Gerais. Mestre em Ciência das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória/ES; especialização em Combate à Corrupção, Antiterrorismo e Combate ao crime Organizado pela Universidade de Salamanca – Espanha. Email jeferson.botelho@hotmail.com ↩︎

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