O direito a preguiça e o tempo-mercadoria

Homem tomando café no sofá ao lado de seu gato.
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“Que você não perca a vida apenas tentando ganhá-la”

Qual a função do trabalho em um mundo que demanda cada vez mais através da técnica? Qual o papel da preguiça? Como esse ócio pode contar a seu favor? Como essas pausas podem o tornar mais produtivo ou mais consciente?

O presente artigo tem como objetivo responder a tais questionamentos, analisar o tempo-mercadoria e o direito a preguiça, fazendo uma breve introdução histórica desde a demonização da preguiça pelo cristianismo, transformada em pecado capital, até a uberização dos dias atuais.

O termo da preguiça talvez tenha sido o que mais sofreu transformações ao longo dos séculos, originalmente era chamada de acedia ou acídia, o que remete a negligência, moleza, falta de cuidado ou mesmo a falta de um olhar produtivo sobre algo.

Após ser chamada de acedia, ou acídia, o termo foi dominado pela palavra melancolia, definido pelo dicionário como “1. Estado mórbido caracterizado pelo abatimento mental e físico 2. Estado de grande tristeza e desencanto geral; depressão”

Somente no século VI, o papa Gregório Magno, tomado como base as Epístolas de São Paulo, definiu como sete os principais vícios de conduta, dentre outros a preguiça, no entanto, somente com a Suma Teológica (documento publicado por São Tomas de Aquino) no século XIII, que se oficializou os pecados capitais.

O termo preguiça, mudou de lugar, mudou de nome, mas continuou sendo a falta, a inação, a moleza, sendo considerado uma omissão, uma incapacidade de fazer o certo, de fazer o bem, de se fazer aquilo que se espera de uma pessoa.

No cristianismo foi dado a ideia de que a preguiça é um pecado muito grave, remetendo a falta de entusiasmo com a obra Divina, que mesmo que não sejamos um gerador, somos continuadores da obra de Deus. Tínhamos a ideia que ao trabalhar fazemos parte da alegria produtiva de estar inserido no mundo e estar colaborando com Deus, pois recebemos esse mundo como Adão quando abriu os olhos.

Criou-se a ideia de que não ser entusiasmado com essa obra do evangelho, ou seja, não ser uma pessoa totalmente concentrada no poder trabalhar é sinal grave que não se pode atuar na obra de deus, sendo uma forma de egoísmo.

No entanto, a partir do século XVI, existe uma mudança radical acerca da preguiça. A partir da Reforma Protestante, o Calvinismo exalta o trabalho como uma condição de existência humana, tornando o trabalho um sinal claro de eleição divina, considerado uma espécie de oração permanente.

Sendo assim, modifica a ideia do trabalho, do castigo de Adão contida no velho testamento quando Deus, ao expulsar Adão do Paraíso disse: “Uma vez que você deu ouvidos à sua mulher e comeu da árvore cujo fruto ordenei que não comesse, maldita é a terra por sua causa; por toda a vida, terá muito trabalho para tirar da terra seu sustento. 18 Ela produzirá espinhos e ervas daninhas, mas você comerá de seus frutos e grãos. 19 Com o suor do rosto você obterá alimento, até que volte à terra da qual foi formado. Pois você foi feito do pó, e ao pó voltará”, em clara que o trabalho seria a consequência de um castigo de Deus.

Calvino então vai constituir o trabalho como forma de oração, ou seja, ao trabalhar constantemente, ao manter ocupada a mente e a mão está colaborando com a obra de Deus, tornando em si o trabalho como um ato religioso, sendo o cristão um grande trabalhador.

O alemão Max Weber, em seu trabalho intitulado A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, publicado em 1904-1905, concluiu que a religião exerce profunda influência sobre a vida econômica, sendo o calvinismo uma das bases para o capitalismo, sendo que a ética do calvinismo e a teleologia, foram fatores essenciais no desenvolvimento do capitalismo no norte da Europa, como Suíça e parte do Reino Unido e Estados Unidos.

O conceito de Calvino do trabalho associa a uma visão de empreendedor, de uma vida proativa, nem é precisando dizer, portanto, que tal ideia foi de encontro com a concepção do Capitalismo, que acredita que o indivíduo é responsável pelo seu sucesso.

Desse modo, muda a concepção que a pobreza seja proveniente do castigo de Deus, mas sim, de falta de ação, de uma preguiça individual, sendo o pobre aquele que não aceitou a visão de mundo produtiva e empreendedora, sendo assim, a pobreza passa a ser culpa do pobre.

No capitalismo as ideias de Calvino encontram terreno fértil, crescendo a ideia de individualização da preguiça, não devendo tais pessoas receber auxílio de outras pessoas ou mesmo do Estado, criando a ideia de vagabundagem mental.

Cresce então a percepção de individualização absoluta, no sentido de sucesso na vida matrimonial, emprego, relações, passa ser uma responsabilidade exclusiva do indivíduo.

No século XIX, o socialista, Paul Lafargue, genro de Marx, lança o livro Direito a Preguiça, criticando o capitalismo e a ideia de santificação do trabalho, no sentido que o trabalho dignifica o homem, assim como ascensão da preguiça como pecado é uma criação dos patrões que precisam imbuir essa ideia na cabeça dos operários a fim de produzir riqueza.

Um século após a publicação do livro por Lafargue, o italiano Domenico de Masi lança seu livro Ócio criativo, não sendo a obra de Masiuma crítica ao capitalismo, mas sim defendendo a valorização de um equilíbrio maior entre a produtividade e a capacidade de criar.

Na referida obra, expõe que devemos estruturar equilíbrio entre trabalho, estudo e lazer, não devendo o ser humano apenas focar no trabalho, devendo valorizar o tempo livre. Tempo livre esse, condição para surgimento de novas ideias, refletir, tornar um ser humano melhor, criativo, que se distingue das máquinas. O sociólogo defende um período de descanso que o cérebro recue e não esteja focado no trabalho, a fim de evitar uma aceleração infindável de produtividade e de metas em que perdemos o sentido e o propósito.

O Direito a preguiça, portanto, é um direito para, através do descanso e ócio, aperfeiçoar a capacidade do indivíduo, sendo fundamental para que pessoas tenham ideias conscientes do tempo, evitando que uma atividade se emende na outra, sem estratégia, transformando o ser humano em um tarefeiro.

Valorizar a capacidade do indivíduo, fazer um ser pensante, no amplo sentido da palavra, é fundamental em um mundo uberizado.

O termo uberização faz referência a precarização sob aparência de modernidade, desaparecendo o emprego estável e surgindo a ideia de trabalho por job e não por emprego. Jobs seria a remuneração por tarefa cumprida.

Em um mundo cada dia com menos emprego e mais trabalho, demandando alta qualificação, voltamos a ideia de Masi. Hoje mais do que nunca, com a precarização do trabalho, como o Brasil, com uma enorme dificuldade para formação de trabalhadores qualificados, as questões de trabalho, emprego, uberização se tornam ainda mais dramática, ou seja, nossa fraqueza educacional, de preparo técnico, de produção, de indivíduos pensantes e autônomos.

  O que se pretende demonstrar, no presente estudo, que a preguiça que emerge na idade moderna tem diálogo com a valorização do trabalho no calvinismo, com a necessidade cada vez maior de um mundo produtivo.

 A revolução industrial, faz surgir todo tipo de reação, sendo mais à esquerda com Lafargue, ou mais dinâmica como de Domenico de Masi, ressignificando o Direito a Preguiça, como oportunidade estratégica de pensar, não como inação, mas como recusa de ação constante, quase psicótica em torno de atividades que se sucedem como tempos modernos de Chaplin.

Se faz necessário pensar, e para pensar não podemos estar exaustos por metas, se dar ao direito de olhar para tudo e dizer qual melhor caminho, o que pressupõe um certo exercício de ócio, o que Calvino considerou pecado e Domenico considera transformação de qualquer paradigma e de qualquer transformação do mundo.

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