Introdução
As agressões às mulheres lamentavelmente são muito constantes em nosso país, chegando muitas vezes a causar a morte das vítimas.
Para se ter ideia da gravidade do problema, segundo informações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, somente no primeiro trimestre de 2019 aumentou o número de feminicídios íntimos em relação ao mesmo período do ano de 2018. Oito em cada dez casos de feminicídio ocorreram dentro de casa e 26 dos 37 casos tinham autoria conhecida.
Jadson Santos de Faria Filho[1], assim nos informa:
À violência contra a mulher não é um fato novo. Pelo contrário, é tão antigo quanto a humanidade. O que é novo, e muito recente, é a preocupação com a superação dessa violência como condição necessária para a construção da nação humana.
E mais novo ainda é a judicialização do problema, entendendo a judicialização como a criminalização da violência contra as mulheres, não só pela letra das normas ou leis, mas também, e fundamentalmente, pela consolidação de estruturas específicas, mediante as quais o aparelho policial e jurídico pode ser mobilizado para proteger as vítimas e punir os agressores. A explosão da violência hoje parece ultrapassar qualquer forma de entendimento humano. As pesquisas sobre violência contra a mulher e de gênero, expressas nas relações interpessoais no espaço doméstico ou conjugal, iniciaram-se a partir da década de 1980 graças à inspiração do movimento feminista que possibilitou a visibilidade pública e política.
Todos conhecemos uma história de mulheres próximas a nós que já foram vítimas de agressão por seus companheiros, e muitas não levam o fato às autoridades por vergonha ou por dependência financeira, ou até mesmo por fraqueza emocional.
Desde 7 de agosto de 2006 temos a Lei nº 11.340[2], que assim afirma em seu preâmbulo:
Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.
Tal lei ficou conhecida como Lei Maria da Penha, pois esta senhora, que é farmacêutica, foi vítima de agressões de seu então marido, sendo que em 1983 este lhe deu um tiro que não a matou mas deixou-a paraplégica. O agressor foi processado, mas não chegou a cumprir pena, sendo que voltou a residência da vítima e tentou eletrocutá-la!
Apesar de ter denunciado o agressor, Maria da Penha não via efetividade nas ações da Justiça brasileira. Então ela resolveu acionar organismos internacionais, culminando que no ano de 2002 o Brasil foi sancionado por omissão e negligência pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Por conta da condenação acima noticiada, nosso país teve que se comprometer em reformular suas leis e políticas em relação à violência doméstica, o que culminou com a edição da Lei nº 11.340/06, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha, como já afirmado.
Com toda a imensidão de leis existentes em nosso país, é seguro afirmar que a Lei Maria da Penha é a mais conhecida entre os brasileiros. Em pesquisa realizada há poucos anos, constatou-se que apenas 2% da população desconhece tal lei.
Mais recentemente surge no ordenamento jurídico penal brasileiro outra alteração legislativa bem significativa, que foi a Lei nº 13.104/15 que alterou o Código Penal e tipificou a conduta do feminicídio:
Artigo 121. Matar alguém:
Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
Pena – reclusão, de doze a trinta anos.
Alguns casos de agressão a mulheres ocorreram no meio desportivo, o que dá uma dimensão midiática maior ao caso, por se tratar de figuras conhecidas do público, particularmente de torcedores, o que leva a discussões típicas do mundo desportivo, principalmente o da prática do futebol.
Lei Maria da Penha
Como visto acima, a Lei nº 11.340/06, apelidada de Lei Maria da Penha, foi fruto de condenação do Estado brasileiro, que teve de criar mecanismos especiais para enfrentar o problema da agressão às mulheres.
Logo em seu art. 1º a Lei nº 11.340/06 afirma:
Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Essa legislação especial tem 46 artigos, e é minuciosa quanto à proteção da mulher que sofre violência doméstica.
O artigo 5º afirma:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
O que poucas pessoas sabem, é que violência contra a mulher é tipificada como crime não sópelas agressões dos maridos, namorados ou companheiros, mas por qualquer pessoa da família, mas com certeza é pelos companheiros que mais vemos as denúncias de agressões às mulheres.
A violência não é apenas a física, mas também a psicológica, sexual, patrimonial e moral.
As penas previstas na lei, a mínima é reduzida para três meses, enquanto a máxima é aumentada para três anos. Vale lembrar que é acrescentado mais 1/3 no caso de a mulher ser portadora de deficiência.
Feminicídio
A origem do termo remonta aos anos 1970, quando a autora feminista Diana E. H. Russell cunhou a expressão femicide, que é “a matança de mulheres por homens, porque elas são mulheres”.
O termo ganhou mais notoriedade em razão de uma série de mortes ocorridas na cidade mexicana de Juarez, nos anos 1990, onde práticas de violência sexual, tortura, desaparecimentos e assassinatos de mulheres se repetiam em um contexto de omissão do Estado e consequente impunidade para os criminosos, conforme denúncia de ativistas políticas.
Enfim, o feminicídio se configura quando as causas do assassinato, são exclusivamente por questões de gênero, ou seja, quando uma mulher é morta simplesmente por ser mulher.
No Brasil a Lei 13.104, de 9 de março de 2015, alterou o Código Penal e cria o feminicídio, incluindo-o como homicídio qualificado, cuja pena é de reclusão de doze a trinta anos.
Se o feminicídio é praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência; ou na presença de descendente ou ascendente da vítima, a pena é aumentada em um terço até a metade.
As agressões contra a mulher praticada por atletas profissionais.
Entre atletas as agressões praticadas contra as mulheres é algo que ocorre também, só que a imprensa noticia estas quando se trata de atleta famoso, e principalmente dos atletas de futebol.
Certas pesquisas apontam que as agressões às mulheres ocorrem em maior número nas camadas mais humildes da população, ou seja, entre aquele extrato social onde se tenha poucos ganhos financeiros e baixa cultura.
No futebol, é notório que os atletas vêm das camadas mais humildes, e é, como se sabe, um meio onde impera o machismo, não obstante atualmente as mulheres também praticarem essa modalidade esportiva.
O machismo leva os homens a verem as mulheres como seres inferiores e que estas devem obediência e subserviência a eles.
O caso mais rumoroso de agressão a uma mulher por um jogador de futebol é do ex goleiro Bruno, que foi condenado por participar da morte e desaparecimento do corpo de sua namorada, Elisa Samúdio. Este atleta, antes de ser preso, concedeu entrevista coletiva onde afirmou que era comum os casais “saírem na mão”, o que causou revolta entre as mulheres. Mais tarde ele foi preso, julgado e condenado pela morte e desaparecimento da moça, que, inclusive, tivera um filho com esse rapaz.
Na época discutiu-se muito se o clube com o qual o atleta mantinha contrato de trabalho poderia despedi-lo por justa causa.
A situação causou um certo transtorno para os clubes, a ponto de a Lei Pelé (Lei nº 9.615/98) ser alterada em 2011, sendo que foi incluído um parágrafo ao art. 28, que assim prevê:
§ 7º A entidade de prática desportiva poderá suspender o contrato especial de trabalho desportivo do atleta profissional, ficando dispensada do pagamento da remuneração nesse período, quando o atleta for impedido de atuar, por prazo ininterrupto superior a 90 (noventa) dias, em decorrência de ato ou evento de sua exclusiva responsabilidade, desvinculado da atividade profissional, conforme previsto no referido contrato.
Criar normas no calor da emoção acaba por se fazer bobagens, que é, ao nosso sentir, o que ocorreu no parágrafo acima, e que mais adiante comentaremos.
Outro caso que a imprensa esportiva deu ênfase, foi de um jovem atleta do Ceará, que estava para ser contratado pelo Corinthians e que respondia a processo por suposta agressão à namorada, sendo que não foi contratado por pressão da própria torcida do clube paulista.
Mais recentemente, o atleta Jean do São Paulo Futebol Clube foi detido nos Estados Unidos, onde passava férias com sua família, por supostas agressões à sua esposa.
Vamos a partir desses casos, tentar deitar luzes sobre o tema, o qual é espinhoso, pois ninguém em sã consciência é favorável a agressores de mulheres, mas para se analisar a situação faz-se necessária uma abordagem eminentemente trabalhista e kelseniana.
Consequências no contrato especial de trabalho desportivo
O Contrato Especial de Trabalho desportivo está previsto na Lei nº 9.615/98, a qual traz as obrigações do atleta o artigo 35:
Art. 35. São deveres do atleta profissional, em especial
I – participar dos jogos, treinos, estágios e outras sessões preparatórias de competições com a aplicação e dedicação correspondentes às suas condições psicofísicas e técnicas;
II – preservar as condições físicas que lhes permitam participar das competições desportivas, submetendo-se aos exames médicos e tratamentos clínicos necessários à prática desportiva;
III – exercitar a atividade desportiva profissional de acordo com as regras da respectiva modalidade desportiva e as normas que regem a disciplina e a ética desportivas.
O rol previsto na lei é meramente exemplificativo, cabendo a aplicação das regras de Direito Comum que regem os contratos em geral.
Vejamos o que diz o Código Civil:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
A Consolidação das Leis do Trabalho não traz norma específica quanto a como as partes devem se comportar, mas prevê, por exemplo, que é motivo para rescisão por justa causa por parte do empregador as práticas previstas no artigo 482:
Art. 482 – Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:
a) ato de improbidade;
b) incontinência de conduta ou mau procedimento;
c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço;
d) condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena;
e) desídia no desempenho das respectivas funções;
f) embriaguez habitual ou em serviço;
g) violação de segredo da empresa;
h) ato de indisciplina ou de insubordinação;
i) abandono de emprego;
j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;
k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;
l) prática constante de jogos de azar.
m) perda da habilitação ou dos requisitos estabelecidos em lei para o exercício da profissão, em decorrência de conduta dolosa do empregado.
Um atleta que comete um crime previsto na Lei Maria da Penha ou até mesmo feminicídio, se enquadraria onde no ordenamento jurídico brasileiro?
Parece-nos que a previsão do art. 35 da Lei Pelé não agasalha as práticas criminosas previstas na legislação criminal, pois os deveres ali previstos dizem respeito direto à execução do contrato de trabalho.
O mesmo se diga quanto ao artigo 422 do Código Civil, pois o atleta não feriu o princípio da boa-fé e muito menos agiu com improbidade.
Resta, ao nosso ver, a aplicação da CLT, ou seja, seria motivo para justa causa, e se positivo, onde enquadrar o ato do atleta?
Em nossa opinião somente poderá ser despedido o atleta quando este, se condenado a pena privativa de liberdade e, ainda, desde que transitada em julgado, isto é, o ato se enquadraria na previsão da alínea “d” do artigo 482 da CLT, pois esta justa causa só existe pelo simples fato de o empregado não poder exercer sua função, já que está preso.
O simples fato de o empregado ser detido preventivamente não autoriza a rescisão do contrato por justa causa.
E pelo artigo 28, § 7º da Lei Pelé, o clube somente poderá suspender o contrato do atleta por ato alheio ao contrato e de responsabilidade exclusiva deste, após 90 dias, ou seja, criou-se uma norma que protegeu os atletas, quando a CLT resolveria o assunto. Isso é o que acontece quando não se procura um juslaboralista para criar leis laborais desportivas.
Conclusão
O atleta profissional que praticar violência contra a mulher, inclusive o feminicídio, não poderá ter seu contrato de trabalho rescindido por justa causa, pois tais atitudes, ainda que reprováveis, não são motivo para a aplicação da punição mais drástica de um contrato de trabalho.
Há que se ter em mente que as punições para agressões à mulher estão previstas no Código Penal Brasileiro, e não incluem a proibição de trabalhar, pois este é um Direito Fundamental garantido na Constituição da República, no art.5º, XIII e art. 6º.
Querer alegar que um atleta que pratica agressão a uma mulher macula a imagem de um clube, é um moralismo incabível no futebol, ou até machismo disfarçado.
E como se diz no meio do futebol, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, ou seja, não se aprova jamais agressões a uma mulher, mas não se pode impedir alguém de trabalhar.
Vejamos, após cumprir a pena não poderá jamais um homem voltar a trabalhar? Terá de se lançar à mendicância, ou viver de favores?
Parece-nos que não é isso que uma sociedade civilizada deve almejar.
Enfim, durante o período de andamento do processo, se o atleta estiver preso, o contrato ficará suspenso, e isso após noventa dias e se não ocorrer prisão, o clube terá de dar continuidade ao pacto celebrado, mas terá todo o direito e rescindir arbitrariamente, respeitando-se a dignidade do atleta na hora da dispensa.
Caso a dispensa sem justa causa se dê e o clube desrespeite a dignidade do trabalhador com entrevistas dos dirigentes maculando a imagem do atleta, este terá direito a uma indenização em razão de evidente dano moral.
O mesmo se diga quanto à dispensa por justa causa intempestiva, situação que levará o atleta a pedir o pagamento das indenizações como pagamento de salários até o final do contrato além de indenização por eventual dano moral.
É assim como pensamos.
[1] Feminicídio e a violência contra mulher no Brasil. Artigo publicado no site JUS Brasil: https://jus.com.br/artigos/74104/feminicidio-e-a-violencia-contra-mulher-no-brasil acessado em 23/12/2019.
[2] Entrou em vigor 45 dias após a publicação.