1.A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL
A competência da Justiça Federal está prevista nos arts. 108 e 109 da CF/88 e, sua competência originária, em matéria processual penal, é julgar os crimes em que estejam envolvidos bens ou interesses da União, in verbis:
Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais:
I – processar e julgar, originariamente:
a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral;
b) as revisões criminais e as ações rescisórias de julgados seus ou dos juízes federais da região;
c) os mandados de segurança e os habeas data contra ato do próprio Tribunal ou de juiz federal;
d) os habeas corpus, quando a autoridade coatora for juiz federal;
e) os conflitos de competência entre juízes federais vinculados ao Tribunal;
II – julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição.
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;
II – as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada ou residente no País;
III – as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional;
IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;
V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;
V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo;
VI – os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira;
VII – os habeas corpus , em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição;
VIII – os mandados de segurança e os habeas data contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais;
IX – os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar;
X – os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o “exequatur”, e de sentença estrangeira, após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização;
XI – a disputa sobre direitos indígenas.
§ 1º As causas em que a União for autora serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte.
§ 2º As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal.
§ 3º Lei poderá autorizar que as causas de competência da Justiça Federal em que forem parte instituição de previdência social e segurado possam ser processadas e julgadas na justiça estadual quando a comarca do domicílio do segurado não for sede de vara federal.
§ 4º Na hipótese do parágrafo anterior, o recurso cabível será sempre para o Tribunal Regional Federal na área de jurisdição do juiz de primeiro grau.
§ 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.
2.COMPETÊNCIA PARA A FISCALIZAÇÃO DA ORDEM PRIORITÁRIAS DA VACINAÇÃO.
No Declínio de Atribuição nº 51/2021/GABPR28-AM (Referência: 1.16.000.002812/2018-10), a Procuradora da República Anna Paula Coutinho De Barcelos Moreira declinou da sua atribuição colacionando entre outros argumentos:
Oficiado, o Ministério da Saúde asseverou que “compete a cada Secretaria de Saúde definir e executar as ações de publicidade das listas de pacientes que aguardam atendimento pelo SUS, que estão sob sua gestão”, sendo que existem, no País, “experiências acerca da publicidade das listas de espera para atendimento pelo SUS, por meio de sites na internet, que permitem ao usuário do SUS acompanhar a sua demanda por atendimento, inclusive com a evolução da ordem de espera” (Doc. 17).
(…..)
A partir das informações reunidas durante a tramitação destes autos, verifica-se que a regulamentação do tema da “transparência das listas de espera para procedimentos do SUS” no Distrito Federal depende precipuamente da atuação dos agentes locais, visto que o Ministério da Saúde já sinalizou positivamente ao fornecimento de apoio técnico para a implantação do sistema nos Estados.
Destarte, entre as principais medidas a serem adotadas encontram-se: i) o diagnóstico da organização das listas de espera do SUS e transparência das informações no Distrito Federal, ii) a realização de reuniões técnicas com a Secretaria de Estado de Saúde do DF, visando a discussão permanente das dificuldades da regulação; iii) a mobilização e a articulação para a edição de projeto de lei ou a aprovação de projeto já existente na Câmara Legislativa do DF [1] , e; iv) outras medidas que entender pertinentes e/ou previstas no projeto do CNMP anexado à NF nº 1.16.000.003095/2019-16 (apenso).
Percebe-se a toda evidência que a União através do Ministério da Saúde estabeleceu os critérios gerais, mas os Estados através das Secretarias de Saúde podem aumentar os espectros dos critérios e ficaram com a função de executar as ações de publicidade das listas, destarte, a fiscalização da ordem prioritárias da vacinação.
3.OS CRITÉRIOS PARA DEFINIR A COMPETÊNCIA GENÉRICA DA JUSTIÇA FEDERAL
De todas hipóteses elencadas no artigo 108 e 109 da Constituição Federal analisaremos apenas a chamada competência criminal genérica da Justiça Federal delineada no inciso IV do art. 109 da CF, in verbis:
“os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”.
Defendemos no livro “Tratado Doutrinário de Processo Penal” que acompetência criminal genérica da Justiça Federal, deve obedecer a três critérios conjugados:
a) a presença de ente federal no pólo passivo da lide criminal (o crime deve ser praticado em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas);
b) o reflexo direto do delito em bem, interesse ou serviço de ente federal;
Para fins de fixação da competência da Justiça Federal com base no art. 109, IV, da Constituição Federal, essa lesão aos bens, serviços e interesses da União deve ser direta. Caso contrário, a competência será da Justiça Estadual.
No mesmo sentido o STJ tem reiteradamente decidido que:
A fixação da competência da Justiça Federal ocorre no caso de violação direta de interesses da União e órgãos federais. Nessa linha, o estelionato que causa prejuízo apenas a particulares não fixa a competência da Justiça Federal. (Precedentes da Terceira Seção: CC 143.616/SP, de minha relatoria, DJe 9/3/2018; CC 154.507/RN, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, DJe 15/12/2017 e AgRg no CC 144.065/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, DJe 30/3/2017. STJ – CONFLITO DE COMPETÊNCIA CC 170119 GO 2019/0380339-9 (STJ)).
No sentido de que a ofensa indireta, genérica ou reflexa praticada em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, de suas entidades autárquicas ou empresas públicas federais, não atrai a competência da Justiça Federal com base no art. 109, IV, da CF/88: STJ, 3ª Seção, CC 147.393/RO, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 14/09/2016, DJe 20/09/2016; STJ, 5ª Turma, RHC 066.784/RS, Rel. Min. Felix Fischer, j. 21/06/2016, DJe 01/08/2016
c) a ocorrência de prejuízo concreto a ente federal.
Uma das consequências imediatas do critério do reflexo direto do delito em ente federal (alínea b), é que o prejuízo não pode ser presumido, in casu, para fixar a competência federal o prejuízo ao erário deve ser demonstrado concretamente.
Por não aceitar a ocorrência de prejuízo, o STJ já firmou o entendimento (Súmula 546 do STJ) no sentido de que a competência para processar e julgar o crime de uso de documento falso (CP, art. 304) é firmada em razão da entidade ou órgão ao qual foi apresentado o documento público, não importando a qualificação do órgão expedidor. Ou seja, o uso de documento federal (ou estadual) só será de competência federal se for apresentado perante agente, órgão, ou autoridade federal; caso contrário, será delito de competência da justiça estadual.
4.UMA CONCLUSÃO INEVITÁVEL
A ausência de dano direto ou presença de interesse genérico ou indeterminado não atrai, de per si, a competência da Justiça Federal.
A Lei nº 10.826/03 criou o Sistema Nacional de Armas (SINARM), instituído no Ministério da Justiça, no âmbito da Polícia Federal, tem circunscrição em todo o território nacional, ao qual, compete: I – identificar as características e a propriedade de armas de fogo, mediante cadastro; II – cadastrar as armas de fogo produzidas, importadas e vendidas no País; III – cadastrar as autorizações de porte de arma de fogo e as renovações expedidas pela Polícia Federal; IV – cadastrar as transferências de propriedade, extravio, furto, roubo e outras ocorrências suscetíveis de alterar os dados cadastrais, inclusive as decorrentes de fechamento de empresas de segurança privada e de transporte de valores; V – identificar as modificações que alterem as características ou o funcionamento de arma de fogo; VI – integrar no cadastro os acervos policiais já existentes; VII – cadastrar as apreensões de armas de fogo, inclusive as vinculadas a procedimentos policiais e judiciais; VIII – cadastrar os armeiros em atividade no País, bem como conceder licença para exercer a atividade; IX – cadastrar mediante registro os produtores, atacadistas, varejistas, exportadores e importadores autorizados de armas de fogo, acessórios e munições; X – cadastrar a identificação do cano da arma, as características das impressões de raiamento e de microestriamento de projétil disparado, conforme marcação e testes obrigatoriamente realizados pelo fabricante; XI – informar às Secretarias de Segurança Pública dos Estados e do Distrito Federal os registros e autorizações de porte de armas de fogo nos respectivos territórios, bem como manter o cadastro atualizado para consulta.
O órgão federal supracitado, mesmo com todas funções inerentes ao controle de armas, não atraiu, por si só, a competência da Justiça Federal para julgar o porte de arma de fogo irregular.
Do mesmo modo, o simples fato de o Ministério da Saúde exercer as funções de órgão central do Sistema Nacional de Transplante (art. 4º do Dec. nº 2.268/1997) não significa dizer que o crime de remoção de tecidos e órgãos previsto no artigo 14 da Lei nº 9.434/97 seja de competência da Justiça Federal.
Ao furar a fila de prioridade de vacinação não identificamos a presença de ente federal no pólo passivo da lide criminal, vez que a ordem de prioridade está sendo organizada pelas secretarias dos Estados, não há também o reflexo direto do delito em bem, interesse ou serviço de ente federal e não podemos presumir a ocorrência de prejuízo a ente federal.
Evidencia-se que o Ministério da Saúde delegou às Secretarias de Saúde de cada Estado, “definir e executar as ações de publicidade das listas de pacientes que aguardam atendimento pelo SUS, que estão sob sua gestão”, in casu, fica afastada a competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento de eventuais crimes cometidos por “fura-filas”, porquanto não resta caracterizada a hipótese prevista no art. 109, inciso IV, da Carta Magna.