Introdução.
Entra em vigor, agora, a Lei 14.112/2020, que altera substancialmente a Lei 11.101/2005 – Lei de Recuperação e Falência. Dentre todas as mudanças promovidas, a novel lei regulamenta a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da falência. É sobre isso que vamos tratar no presente ensaio.
I – A falência.
Empresa é risco, e isso é fato. Nenhum empreendimento tem a certeza de dar certo. A atividade empresarial é marcada sempre pela incerteza do seu sucesso. Esse risco é tão comum que existe todo um sistema legal específico para regulamentar tal situação. Trata-se da Lei 11.101/05 (LRF) que regula a situação da empresa em crise econômico-financeira e sua relação com os credores, de maneira ampla, desde o ponto mais extremo, que visa afastar o empresário devedor do mercado (falência), à sua forma mais leve, de propiciar meios para que a empresa supere a crise, preservando a sua continuidade (recuperação da empresa).
É óbvio que o empreendedor busca o êxito, almeja o lucro, e luta para isso acontecer. Mas algumas vezes não acontece, e a empresa se vê às voltas com o fantasma da crise econômico-financeira. No pior quadro, a empresa tem a sua falência decretada.
A falência é um processo que tem por objetivo retirar do mercado uma empresa que não têm condições de se manter, promovendo-se uma execução coletiva que abrange todos os seus credores. O objetivo da falência é a extinção da empresa em crise não recuperável. Na forma do disposto no art. 1.044 do Código Civil, a falência é causa de extinção da empresa e dissolução da sociedade empresária.
II – O empresário e a sociedade empresária.
Conforme dispõe o art. 1º da Lei 11.101/2005, a Lei de Recuperação e Falência somente se aplica aos devedores sujeitos às regras do direito empresarial, ou seja, ao empresário e à sociedade empresária, conforme definido nos arts. 966 e seguintes do Código Civil.
Dessa forma, não é qualquer atividade econômica que está sujeita à falência. Aquele que, embora exercendo atividade econômica, não esteja enquadrado na definição de empresário nos termos do Código Civil, não estará sujeito às regras da LRF, ou seja, não poderá ter sua falência decretada, como também não poderá se socorrer do instituto da recuperação. É o caso do previsto no parágrafo único do art. 966 do Estatuto Civil. A LRF também não será aplicada às pessoas naturais não registradas como empresárias, às sociedades simples, às cooperativas, às associações ou às fundações às organizações religiosas ou aos partidos políticos.
A regra, portanto, é que apenas a empresa, assim entendidos o empresário individual a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI) e sociedade empresária, submetem-se ao regime de recuperação e de falência.
Mas não é demais salientar que nem toda empresa está sujeita às regras da LRF, que seu no art. 2º estabelece uma reserva legal, enumerando uma série de empresas a quem ela não se aplica: I – empresa pública e sociedade de economia mista; II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, seguradora de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores. A essas empresas será aplicado um regime jurídico próprio, de intervenção e liquidação extrajudicial.
III – As sociedades de responsabilidade limitada e responsabilização dos sócios e administradores.
Sociedades de responsabilidade limitada são aquelas em que, por disposição legal, os sócios não respondem pelas obrigações sociais, como ocorre com a sociedades anônimas e as sociedades limitadas. Os sócios, nesses tipos de sociedade, têm responsabilidade limitada aos valores de suas ações ou de suas quotas.
Como regra geral, as obrigações contraídas por uma pessoa jurídica empresária não devem ser estendidas aos sócios de responsabilidade limitada. É que, pelo que determina o art. 45 do Código Civil, a existência da pessoa jurídica se dá com o registro, no órgão competente, de seus atos constitutivos. A sociedade empresária adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (CC, art. 985). O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária (CC, art. 1.150).
Ao adquirir personalidade própria, a sociedade empresária torna-se uma pessoa (jurídica) cuja existência não se confunde com a de seus sócios, associados, instituidores ou administradores (art. 49-A do Código Civil, introduzido pela Lei 13.874/2019), revelando, daí, os princípios da separação e da autonomia patrimonial, ora vigentes em relação às sociedades. Por conta deles, a responsabilidade da pessoa jurídica empresária não pode, ordinariamente, ser estendida aos seus sócios.
IV – A desconsideração da personalidade jurídica.
A exceção aos princípios da separação e da autonomia patrimonial, vistos acima, se dá através da desconsideração da personalidade jurídica, que é um instrumento próprio para transpor ou afastar a personalidade jurídica da pessoa jurídica, e responsabilizar diretamente o sócio por trás dela, nos casos previstos e autorizados em lei (para maiores informações recomendamos nosso livro Desconsideração da personalidade jurídica da sociedade limitada nas relações de consumo, publicado pela Editora JH Mizuno).
A atribuição da personalidade à sociedade empresária implica, entre outros fatores, a autonomia patrimonial e a separação da pessoa da sociedade e das pessoas dos seus sócios, de forma que a obrigação contraída pela aquela não passa para seus estes, devendo ser saldada pela própria sociedade, com o seu patrimônio. Porém, casos há em que a personalidade jurídica da sociedade empresária apresenta-se como um entrave ao ressarcimento do credor, fazendo surgir teorias buscando afastar essa autonomia da pessoa jurídica para responsabilizar diretamente o sócio, às quais se denominou teoria da desconsideração da personalidade jurídica, e pela qual o juiz estaria autorizado, em certas e determinadas situações, a desconsiderar momentaneamente a personalidade jurídica da sociedade, transferindo a obrigação para os sócios.
Hoje contamos com a positivação daquela teoria no ordenamento jurídico, como se vê do art. 28 do Código de defesa do Consumidor ou do art. 50 do Código Civil, entre outros.
V – A desconsideração da personalidade jurídica na falência.
Chegamos, então, ao ponto central deste ensaio.
A Lei 14.112/2020, dentre as inúmeras alterações que promoveu na Lei de Recuperação e Falência, introduziu, no âmbito da falência, a regulamentação da desconsideração da personalidade jurídica. Isso se deu por força do novel art. 82-A e seu parágrafo único.
O caput desse art. 82-A dispõe na primeira parte, reconhecendo os princípios da separação e da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, que “é vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida”. Todavia, ressalva, na parte final, que é“admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica”.
Admitida a desconsideração da personalidade jurídica, o parágrafo único passa a regulamentá-la, dispondo que “a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o § 3º do art. 134 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).”.
Destarte, na falência, a desconsideração da personalidade jurídica deverá observar algumas peculiaridades:
a) somente poderá ser decretada pelo juízo falimentar:
Isso significa que, havendo processo de falência contra uma sociedade empresária, somente o juízo falimentar terá competência para decidir sobre a desconsideração da personalidade jurídica dela, sendo que nenhum outro juiz poderá decidir sobre isso.
A crítica que nós fazemos a essa regra é que ela é altamente questionável em razão do que dispõe o caput do art. 28 do Código de defesa do Consumidor, de que “o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”.
Havendo em andamento uma ação de consumo de um consumidor contra uma sociedade empresária, tendo sido pedida a falência desta, qual norma há de prevalecer? Se for a LRF, então não poderá mais o juiz daquela ação de consumo desconsiderar a personalidade jurídica da empresa-ré? Eventual requerimento terá de ser feito ao juízo da falência? Apesar da boa vontade do legislador reformista, entendemos que o Código de Defesa do Consumidor tem prevalência sobre a LRF, numa questão de hermenêutica, por ser a norma especial, no caso.
Todavia, há que se aguardar os desdobramentos que virão do Poder Judiciário ao interpretar essa nova legislação.
b) o fundamento material para a desconsideração será o art. 50 do Código Civil:
Como se revela da redação daquele parágrafo único, a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária, em caso de falência, somente poderá ser efetivada com fundamento no art. 50 do Código Civil, ou seja, em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.
Nossa crítica, aqui, vai ao encontro, também, do que dispõe § 5º do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, bem como o art. 4º da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), que contemplam a chamada teoria menor da desconsideração, o primeiro estabelecendo que “também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”, e o segundo, que “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.”. A questão, exatamente, é se a Lei de Recuperação e Falência poderá afastar a incidência de normas especialíssimas como o Código de Defesa do Consumidor ou a Lei de Crimes Ambientais e, como afirmamos no item imediatamente anterior, tendemos a pensar que não. É mais um problema para a jurisprudência solucionar.
c) deverá ser observado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, sem suspensão do processo falimentar.
Para que se possa efetivar a desconsideração da personalidade jurídica no processo de falência, o juiz deverá observar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto nos arts. 133 a 137 do Código de Processo Civil. Isso significa que deve haver requerimento da parte interessada ou pelo Ministério Público, com a citação dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica para responder em 15 dias. Ao final da instrução processual do incidente de desconsideração, o juiz deverá julgá-lo, acolhendo-o ou rejeitando-o.
Importante notar, no entanto, que a instauração do incidente não suspenderá o processo falimentar, eis que não se aplica, à espécie, o disposto no § 3º do art. 134, da Lei Adjetiva Civil, por expressa menção legal naquele parágrafo único. A razão disso é a celeridade premente que se impõe ao processo de falência na própria reforma ora encetada.
Conclusão.
A reforma da Lei de Recuperação e Falência trouxa muitas novidades ao direito falimentar, e uma delas é a regulamentação da desconsideração da personalidade jurídica no processo de falência. A aplicação do incidente de desconsideração previsto no Código de Processo Civil já era estabelecida por esse próprio código, no art. 15, e pela própria Lei 11.101/2005, no art. 189, que prevê a utilização subsidiária do CPC aos procedimentos falimentares e recuperacionais, então não chega a ser uma novidade propriamente dita. A novidade fica por conta da não aplicação, aos processos de falência, do § 3º do art. 134 do CPC, ou seja, o incidente será instaurado sem a suspensão do processo. Além disso, ajuizado o pedido de falência, somente o juízo falimentar terá competência para decidir sobre a desconsideração do devedor, e o fundamento legal para tanto será apenas o art. 50 do Código Civil.
Bibliografia.
SALES, Fernando Augusto De Vita Borges de. Nova lei de falência e recuperação comentada. São Paulo: JH Mizuno, 2021 – no prelo.
_____. Desconsideração da personalidade jurídica da sociedade limitada nas relações de consumo. Leme: JHMizuno, 2019.
_____. Manual de processo do trabalho. São Paulo: Rideel, 2020.
_____. Manual de prática processual civil. Leme: JHMizuno, 2020.
_____. Manual de direito processual civil. São Paulo: Rideel, 2018.