Resumo: A construção de uma teoria dos direitos fundamentais própria à realidade brasileira não pode ignorar o papel político e constitucional do Ministério Público. Essa instituição, ao longo de seu processo histórico de formação, foi progressivamente instrumentalizada para a promoção e proteção dos direitos fundamentais, atingindo-se seu ápice com a Constituição de 1988. Por conta disso, a base teórica dos direitos fundamentais proposta por Robert Alexy, para ser projetada no sistema jurídico brasileiro com acuidade, deve comportar algumas acomodações em vista do papel desempenhado pelo Ministério Público, especialmente porque no direito germânico não se encontra instituição semelhante. Um primeiro passo para tanto pode ser dado em vista da categoria dos direitos a organização e procedimentos, encontrada dentro dos direitos a ações estatais positivas, em particular os direitos a procedimento em sentido estrito e direitos à formação da vontade estatal. Cada uma dessas vertentes teóricas encontra eco nas funções institucionais do Ministério Público e confirma nessa instituição sua relação intrínseca com a promoção e proteção dos direitos fundamentais.
Palavras-chave: Ministério Público; direitos fundamentais; Robert Alexy.
1. INTRODUÇÃO
Os direitos fundamentais, como dado estrutural de todo sistema jurídico constitucional e dimensão constitutiva da cultura de uma sociedade, são objeto de diversas construções teóricas, as quais buscam, sob critérios variados, ordenar a compreensão jurídico-científica dessa relevante categoria jurídica, política e cultural. Nesse campo do saber, nos últimos trinta anos, o arranjo teórico proposto por Robert Alexy, por sua profundidade e acuidade, tem se destacado como um referencial recorrente tanto na academia, quanto na práxis jurisdicional brasileira.
É inegável, contudo, que, a despeito abrangência da análise realizada pelo autor em sua obra Theorie der Grundrechte (Teoria dos Direitos Fundamentais), traduzida no Brasil em 2008 por Virgílio Afonso da Silva, o estudo e aplicação da teoria alexyana têm se concentrado na máxima da proporcionalidade (ALEXY, 2017, p. 116-120), ferramental primoroso, ainda que passível de críticas, para a solução de casos concretos em que se detecta a colisão de normas jurídicas de estrutura principiológica.
Entretanto, há mais em Alexy do que seu estudo analítico quanto à estrutura das normas jurídicas definidoras de direitos fundamentais e, no presente artigo, buscar-se-á, de modo relacional, a compreensão de um recorte de sua Teoria dos Direitos Fundamentais voltado aos direitos à organização e procedimentos, particularmente em conexão com o papel constitucional do Ministério Público Brasileiro.
Esse é o problema de pesquisa, um tanto quanto peculiar, há de se frisar, já que o tema ministerial não integra formalmente a leitura teórica alexyana, pela singela razão de que, na Alemanha, não há Instituição congênere ao Ministério Público desenhado pela Constituição de 1988 no Brasil.
Tal peculiaridade, contudo, não pode refutar, de pronto, o interesse científico do tema, já que o papel do Ministério Público na promoção e proteção dos direitos fundamentais deve integrar qualquer abordagem em busca de uma “teoria jurídica geral dos direitos fundamentais na Constituição brasileira”, ainda que em derivação à teoria construída por Robert Alexy.
Fixado a direção do presente artigo, o caminho metodológico empregado é o dedutivo, amparado, de um lado, nos predicados institucionais do Ministério Público Brasileiro, em uma roupagem lógico-científica, e, de outro lado, no texto teórico direto de Robert Alexy, ainda que com breves adequações e extrapolações, justamente para se atingir o paralelo argumentativo relacionado à posição sistemática da Instituição Ministerial em matéria de direitos fundamentais.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. Ministério Público no Brasil e sua relação com os direitos fundamentais
O Ministério Público no Brasil, desde o período colonial, com a previsão da figura do “Prometor de Justiça da Casa de Suplicaçam” já nas Ordenações Manuelinas de 1511 (JUNIOR, 2013, p. 92), passou por um longo processo de depuração político-institucional, que culminou com a modelagem que lhe foi conferida pela Constituição da República de 1988, inovadora e sem precedentes na ordem internacional[1].
Tal processo foi nitidamente orientado pela progressiva instrumentalização da Instituição ao asseguramento e concretização dos direitos fundamentais, havendo, ainda nos dias de hoje, movimentos de ampliação e refinamento das práticas ministeriais em vista deste mesmo objetivo maior.
Evidentemente, na contemporaneidade, todo e qualquer braço do Estado, tal como o é o Ministério Público, terá sempre relação com os direitos fundamentais, já que o ente estatal tem por finalidade única a proteção e promoção da dignidade humana, da qual emana a jusfundamentalidade dos direitos que lhe dão significado.
Contudo, no caso específico do Ministério Público, o que se verifica é a progressiva forja de uma Instituição independente, desgarrada da clássica tripartição dos Poderes, cuja função precípua pode ser resumida na promoção e proteção dos direitos fundamentais em face da atividade dos três poderes e também de particulares. Nas linhas que se seguem, ainda que se verifique traços de uma história institucional, o que importa são os marcos funcionais que foram sendo inseridos como balizas à atuação do Ministério Público Brasileiro, todos à serviço dos direitos fundamentais.
Em seu berço histórico, jungia o Ministério Público essencialmente as funções de procurador da coroa[2] e de condutor da persecução penal em juízo[3]. Porém, a partir do Código Civil de 1916 e com o aprofundamento do Código de Processo Civil de 1939[4], por influência do direito italiano, firma-se no espectro de atuação da Instituição Ministerial funções de natureza cível, de cunho judicial e na posição de fiscal da correta aplicação da lei, concentrada apenas em processos revestidos de relevante interesse público, v.g., feitos relativos a casamento e ao exercício do poder familiar.
Desde a origem, essa função cível do Ministério Público, na posição de custos legis, tinha por fundamento político-institucional a indisponibilidade ou a alta relevância jurídico-social das questões de fundo discutidas em um processo judicial, associando-se a intervenção ministerial à casos atinentes a direitos de sobrelevada importância às partes ou à sociedade, já dentro da matriz de significação jurídica em que hoje se encontram os direitos fundamentais.
Entre as décadas de 1960 e 1970, aportam no Brasil os influxos teóricos da fase instrumentalista do processo civil italiano[5], pautada essencialmente pelo marco teórico das ondas renovatórias de acesso à justiça, enunciadas por Cappelletti e Garth em obra clássica de nome correlato (2002), com destaque, em razão do recorte do problema desta pesquisa, à segunda onda, voltada à superação da barreira da representação em juízo dos direitos metaindividuais – “direitos à procura de um autor”.
A segunda onda renovatória de acesso à justiça parte essencialmente da constatação empírica da existência de um conjunto de direitos ou interesses que não era adequadamente contemplado pela tradição processual civil clássica, adstrita à noção de processo como relação triádica entre juiz e duas partes processuais. Tais novos direitos ou interesses são caracterizados justamente por uma titularidade coletiva ou grupal, com a diluição das possibilidades apriorísticas de determinação singular de seu sujeito ativo, a reclamar, por conseguinte, uma tutela jurisdicional também plural, adequando-se o modelo de processo até então aplicado para lhe conferir um ferramental hábil e eficiente para a proteção desses novos direitos.
Tal movimento teórico, não obstante próprio à realidade do Direito Processo Civil, mostrou-se relevante no processo histórico de construção do Ministério Público Brasileiro, pois a Instituição resultou contemplada como o ente legitimado universal à propositura de ações coletivas para a defesa em juízo dos direitos metaindividuais, como se vê com a edição da Lei n. 7.347/1985[6], que trouxe a previsão da ação civil pública para tutela de típicos direitos dessa natureza, exemplificados no rol de seu art. 1º. Vale frisar, outrossim, que essa nova perspectiva de atuação já vinha sendo construída pela práxis ministerial desde anos antes, pelo manuseio adaptado de outras previsões legislativas, como, v.g., o art. 14, § 1º, da Lei n. 6.938/1981, tendo sido consolidada com a promulgação da Constituição de 1988, como se vê da previsão do art. 127, caput, e a art. 129, inc. II e III.
Essa novel função, revelada em bases constitucionais pela ordem de 1988, alterou significativamente o papel finalístico do Ministério Público na conjuntura político-institucional brasileira, lançando a Instituição a um caminho sem volta. Para se projetar em juízo adequadamente como legitimado universal em ações coletivas voltadas à defesa de direitos metaindividuais, a Instituição precisou se aproximar da sociedade, fonte primeira e última dessa nova objetividade jurídica, abrindo-se aos novos ares democráticos de 1988, inclusive em suas estruturas internas.
Como resultado dessa aproximação, o móvel, até então processualístico, foi enriquecido e ganhou substância, trazendo às portas do Ministério Público legítimas demandas sociais, marcadas pela aspiração à concretização dos diversos direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição de 1988 e por um sem-número de Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Esses direitos, a despeito de titularizados por indivíduos singulares, comportavam um melhor tratamento no plano metaindividual e, em razão disso, apresentaram um terreno fértil para a atuação coletiva judicial do Ministério Público.
Após um período de experimentação das potencialidades da ação civil pública[7], ou seja, da conclamação da tutela judicial dos direitos metaindividuais, o papel coletivo do Ministério Público teve uma outra de suas dimensões reveladas: a atuação extrajudicial da Instituição por intermédio de mecanismos de aplicação negociada do direito para solução de conflitos relativos aos direitos fundamentais.
A despeito da experiência parcialmente exitosa na judicialização de conflitos metaindividuais associados aos direitos fundamentais, como se vê, v.g., nos processos voltados ao controle judicial de políticas públicas, identificou-se uma relativa inadequação da ambiência jurisdicional para o processo dialógico e a discussão aprofundada que muitos dos casos concretos requerem, especialmente por conta da rigidez procedimental e da tutela fragmentada que marca, por natureza, o exercício da atividade jurisdicional, ao se discutir tão somente o caso concreto, sem espaço argumentativo para considerações e reflexões de maior amplitude.
Em razão disso, detectada essa lacuna de desempenho do sistema de justiça, formou-se, mais uma vez por impulso espontâneo de um processo histórico-institucional, uma cultura de resolutividade[8] das questões apresentadas ao Ministério Público por caminhos paralelos ao Poder Judiciário, porém sempre guiados pela promoção e proteção dos direitos fundamentais, de matiz individual e social.
Contudo, para se viabilizar a consecução da Justiça e a promoção e proteção dos direitos fundamentais para além (ou ao lado) da atividade jurisdicional, foi necessária a concepção e estruturação de procedimentos próprios ao Ministério Público, com absoluto destaque ao inquérito civil, no bojo do qual pode se dar a realização de audiências públicas[9], a pactuação de termos de ajustamento de conduta[10] e a formulação de recomendações[11] pelo Órgão de Execução[12].
Pelo problema de pesquisa que orienta este artigo, não é pertinente avançar para esmiuçar os conceitos, objetos e potencialidades funcionais de cada um desses instrumentos. Porém, pela pertinência da análise, cabe discorrer, ainda que brevemente, sobre alguns atributos do inquérito civil, procedimento extrajudicial típico e exclusivo do Ministério Público no Brasil[13].
Em sua origem, o inquérito civil foi concebido como um instrumento extrajudicial de coleta de informações, obtidas a partir do poder de requisição[14] da Instituição Ministerial, visando essencialmente a apuração dos contornos de um ilícito na esfera de um direito metaindividual. Uma vez constatada a ocorrência ilícita, o único caminho possível ao Ministério Público era o ajuizamento de uma ação civil pública, a qual teria como documento instrutório primordial toda a massa de informações coletadas no inquérito civil.
Porém, como antecipado, o ferramental resolutivo do Ministério Público foi ampliado ao longo dos anos, com a inclusão da possibilidade de celebração de compromisso de ajustamento de conduta[15] e de expedição de recomendação, por meio do que, cada qual a seu modo, o ilícito identificado pode ser debelado independentemente da atividade jurisdicional.
Progressivamente, portanto, foi quebrada a relação estrita de instrumentalidade do inquérito civil com a propositura da ação civil pública, ao se abrir ao Ministério Público a possibilidade de consecução da Justiça para além do Poder Judiciário, com a efetiva promoção e proteção dos direitos fundamentais, em especial aqueles sob a roupagem metaindividual, a partir desse típico procedimento ministerial.
Veja que, tal como o processo judicial está a serviço da atividade jurisdicional, em tempos atuais, o inquérito civil está associado ao desempenho das funções precípuas do Ministério Público em matéria de direitos fundamentais, dando base ao exercício da tutela ministerial para os casos submetidos a sua atuação resolutiva. Hoje, a instrumentalidade associada ao inquérito civil não é mais aquela apenas direcionada a mera provocação do Poder Judiciário por intermédio da instrução de uma ação civil pública.
A rigor, tempos atuais, o inquérito civil é propriamente um instrumento de consecução da Justiça e promoção e proteção dos direitos fundamentais de per si, ao amparar e concretizar as atividades próprias do Ministério Público, a partir do manuseio adequado das ferramentas acima mencionadas.
Evidentemente, a atuação do Ministério Público, na forma e no conteúdo, não se confunde com a atividade jurisdicional, muito menos a torna desnecessária. A jurisdição, como informa a doutrina tradicional de processo civil (CARNEIRO, 2012, p. 35), é uma atividade substitutiva às partes, pois o Estado-juiz, diante de um conflito de interesses, aplica impositivamente o direito por meio de uma decisão com aptidão de formar a coisa julgada formal e material.
Por sua vez, na atuação resolutiva do Ministério Público, em especial na ambiência própria às discussões de um termo de ajustamento de conduta, a solução é construída em bases consensuais entre o Órgão de Execução Ministerial e o interessado, a partir da aplicação negociada do direito ao caso concreto, mecanismo esse hábil à resolução dos conflitos de modo tão legítimo quanto o é a atividade jurisdicional.
Essencialmente, por meio de um termo de ajustamento de conduta, o interessado – Estado ou particular – subscreverá o compromisso com um plano de ação para a solução da questão levantada pelo Ministério Público, pactuando com a Instituição Ministerial como, quando e de que forma se desincumbirá do dever constitucional de promover ou proteger o direito fundamental atrelado ao problema apontado e que se encontra em estado de lesão ou de ameaça de lesão (ZIESEMER; ZOPONI, 2017, p. 94).
Como é próprio ao termo de ajustamento de conduta, em seu processo de negociação, não pode o Órgão de Execução Ministerial abrir mão da tutela adequada do direito metaindividual violado, porque se trata de interesse marcado pela cláusula da indisponibilidade e com predicados de jusfundamentalidade. Contudo, deve a Instituição Ministerial abrir-se a um franco diálogo com o interessado, em geral o administrador público, na busca de se construir uma solução concretamente exequível pela gestão do subscritor, à luz da realidade local nos planos técnico, econômico-financeiro e até mesmo cultural.
Por conseguinte, ainda que seja atribuição do Ministério Público trazer para a mesa de negociações uma minuta do ajustamento a ser celebrado, cobrindo-se os principais pontos para a tutela satisfatória do direito fundamental em jogo, deve haver um espaço comunicacional real para a manifestação do administrador e para ponderação dos aspectos e preocupações por ele lançadas, acolhendo-se suas sugestões e contribuições, à luz de justificações fático-jurídicas plausíveis e em vista da finalidade maior que orienta a negociação (ZIESEMER; ZOPONI, 2017, p. 94-95).
Não é demais insistir que o que torna o termo de ajustamento de conduta viável é justamente a confluência de manifestações de vontade dos envolvidos: de um lado o Ministério Público, por seu Órgão de Execução, em representação da sociedade; de outro lado, o poder público ou ente privado, por seus administradores; ao meio e como elo de ligação, o interesse recíproco de atingir solução que amplifique a promoção ou proteção de um direito fundamental.
Vale repisar esse aspecto, pois todo acordo fruto de autocomposição, e o termo de ajustamento de conduta, ainda que sui generis (RODRIGUES, 2011, p. .122-139), amolda-se a essa categoria, somente será uma alternativa viável à judicialização (leia-se, à heterocomposição) se, e somente se, as partes em plenitude anuírem aos seus termos. Para uma anuência plena, porém, a condição chave é justamente a possibilidade de seu conteúdo ser o produto da interlocução e do consenso dos interessados, construindo-se uma aplicação negociada do direito à espécie, e não uma mera imposição unilateral de uma das partes, no caso da Instituição Ministerial.
Pouco ou nada adianta um termo de ajustamento de conduta cuja subscrição foi forçada, muitas vezes por recursos retóricos, pelo Órgão de Execução, pois, nessas circunstâncias, dificilmente será cumprido com o compromisso necessário pelo administrador subscritor, tudo em prejuízo ao direito fundamental cuja situação jurídica está tensionada (ZIESEMER; ZOPONI, 2017, p. 95).
Como se vê, o relevante papel institucional do Ministério Público enquanto braço estatal de promoção e proteção dos direitos fundamentais, em especial tendo como pano de fundo conflitos de natureza metaindividual, é o produto de uma evolução político-cultural do Estado e sociedade brasileiros ainda em andamento. Além disso, é também correto afirmar que muitas das etapas constitutivas dessa evolução foram – e ainda são – impulsionadas pelas dificuldades e desafios encontrados na atuação cotidiana da Instituição Ministerial.
Essa postura eminentemente pragmática do Ministério Público, contudo, tem deixado brechas teóricas relevantes e, em alguma medida, preocupantes na compreensão sistemática das funções dessa Instituição e de suas interações com outros braços do Estado e da sociedade civil, haja vista a dimensão que a atuação ministerial atingiu na realidade brasileira contemporânea.
Por conta disso, como anunciado no introito deste artigo, a presente pesquisa busca uma aproximação teórica desse viés de atuação do Ministério Público com a teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy, em um esforço argumentativo para oferecer algumas contribuições às lacunas existentes.
2.2. Direitos a organização e procedimento na Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy
Em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais, Robert Alexy concebe um sistema teórico de embasamento à categoria jurídica dos direitos fundamentais. Cuida-se, segundo o autor, de uma “teoria jurídica geral dos direitos fundamentais da Constituição alemã” (2017, p. 31), expressão essa que reúne três predicados relevantes para compreensão do objeto de pesquisa de Alexy nessa relevante obra.
A uma, é uma teoria que se volta a “determinados direitos fundamentais positivos vigentes” (2017, p. 32), a saber os direitos fundamentais previstos na Constituição alemã atualmente em vigor, formalmente designada como Lei Fundamental da República Federativa da Alemanha, promulgada em 8 de maio de 1949. A duas, “é uma teoria dogmática” (2017, p. 32), ou seja, é uma teoria que busca conhecer e perscrutar o sistema de direito positivo e também a práxis jurídica, em particular a práxis jurisprudencial. A três, é uma teoria “geral”, que se dedica aos problemas concernentes a todos os direitos fundamentais e não a direitos determinados.
Esses predicados, em especial os dois primeiros, podem sugestionar a (in)viabilidade de se estudar a fundo a produção teórica de Alexy por outras comunidades jurídicas que não a alemã, já que o objeto de estudo declarado do autor é o direito positivo vigente na Alemanha.
Contudo, a profusão do pensamento alexyano na academia e práxis jurídica brasileira, tal como em outros países, sinaliza uma conclusão diversa. Isso se dá porque, muito embora o objetivo declarado do autor, revelado pelos três predicados acima apontados, sua Teoria dos Direitos Fundamentais atingiu grau de abstração teórica e de logicidade sistêmica que permite trasladar suas conclusões para direitos positivos estrangeiros, conquanto tenham eles uma base estrutural comum ao direito alemão, em especial uma Constituição escrita, na qual se encontram a previsão de direitos fundamentais, particularmente por meio de normas de estrutura principiológica, e a possibilidade do controle jurisdicional de atos estatais, inclusive sob o critério da constitucionalidade.
Essa constatação é manifesta, verba gratia, na conhecida formulação da máxima da proporcionalidade (2017, p. 116-120), atingida pelo autor no estudo das normas de direitos fundamentais, a qual é empregada diuturnamente na resolução de situações em que se têm a colisão de princípios de direitos fundamentais, independentemente da nacionalidade do sistema jurídico em que tal embate se apresenta. Nos aspectos estruturais de sua Teoria, Alexy oferece respostas a problemas ontológicos do direito enquanto mecanismo de regulação social, o que transborda as fronteiras de um determinado direito positivo.
A obra alexyana, contudo e por óbvio, não se resume à elegante formulação do princípio da proporcionalidade. Ao lado do estudo da tipologia das normas de direitos fundamentais – regras e princípios, examinou o autor com o mesmo rigor as posições jurídicas fundamentais (2017, p. 184-185), as quais decorrem das normas de direitos fundamentais. Essas posições definem, de modo relacional, os titulares e os destinatários de um determinado direito, além esclarecer as ações (ou do conteúdo) cuja realização dá significado a tal direito.
Com essa abordagem analítica, erigiu Alexy um “sistema de posições jurídicas fundamentais”, marcado por uma tríplice divisão a partir da estrutura característica de cada uma das posições, a saber: direitos a algo, liberdades e competência (2017, p. 193).
Para o recorte do objeto de pesquisa desse artigo, importa a posição jurídica relativa à categoria denominada por Alexy por “direitos a algo”, cuja estrutura básica é a seguinte “a tem em face de b, um direito a G”, em que ‘a’ é o portador ou o titular do direito, ‘b’ é o destinatário do direito e ‘G’ é o objeto do direito[16].
Ao examinar o objeto dos direitos a algo, Alexy identifica duas possíveis ações do destinatário, tomando-as como critério para uma subdivisão da categoria dos direitos a algo: de um lado, uma ação negativa (abstenção), correspondendo aos denominados “direitos de defesa”; de outro lado, uma ação positiva (um fazer), associado aos rotulados “direitos a prestações” (2017, p. 193-196), os quais, quando têm o Estado como destinatário, são rotulados na obra de referência como “direitos a prestação em sentido amplo” ou “direitos a ação estatal positiva” (2017, p. 433).
Um último recorte no arranjo dos direitos fundamentais desenhado por Alexy deve ser feito já dentro da categoria direitos a prestação em sentido amplo. Afirma o autor (2017, p. 442):
Aqui, e como já mencionado, o conceito de direito a prestações será compreendido de forma ampla. Todo direito a uma ação positiva, ou seja, a uma ação do Estado, é um direito a uma prestação. […] A escala de ações estatais positivas que podem ser objeto de um direito a prestações estende-se desde a proteção do cidadão contra outros cidadãos por meio de normas de direito penal, passa pelo estabelecimento de normas organizacionais e procedimentos e alcança até prestações em dinheiro e outros bens
Vê-se, por conseguinte, que, segundo Alexy, o direito a prestações inclui as prestações fáticas, mas também prestações normativas, por meio das quais são erigidas proteções normativo-penais e são criadas normas organizacionais e de procedimento. Em razão disso, os direitos a prestação em sentido amplo são subdivididos em 3 (três) grupos, a saber: direitos a proteção; direitos a organização e procedimento; direitos a prestações em sentido estrito[17].
Atinge-se, por fim, o nicho teórico, dentro da ampla formulação alexyana, em que se encontra o problema de pesquisa deste artigo: os direitos a organização e procedimento em face do Estado enquanto uma das dimensões de uma teoria geral dos direitos fundamentais. Amparado na análise de um due process dos direitos fundamentais iniciada por Häberle e Hesse, Alexy enfrenta essa perspectiva, ainda controvertida, dos direitos fundamentais. Para o autor (2017, p. 472):
A cláusula “organização e procedimento” descreve de forma extremamente ambígua o objeto desses direitos. É necessário indagar se, com o conceito de direito a organização e procedimento, é descrito um complexo integrado de direitos, ou se esse conceito combina dois complexos independentes de direitos, a saber, direitos a organização e direitos a procedimento, os quais poderiam também ser tratados de forma separada.
Diante dessa primeira dificuldade teórica, Alexy reconhece que a expressão em comento – direitos a organização e procedimento – tem sido utilizada de modo amplo, desprovida da tecnicidade, dentro de um espectro de significado que leva à aglutinação de coisas bastante diferentes (2017, p. 472-473). Entretanto, reconhece o autor que o elemento de comunhão a tudo o que é abrangido por esse conceito é a “ideia de procedimento”, in verbis (2017, p. 473):
Procedimentos são sistemas de regras e/ou princípios para a obtenção de um resultado. Se o resultado é obtido por meio da observância dessas regras e/ou respeito aos princípios, então, ele deve, do ponto de vista procedimental, ser classificado positivamente. Se ele não é obtido dessa forma, ele é, do ponto de vista procedimental, defeituoso, e deve ser, por isso, classificado negativamente. Esse conceito amplo de procedimento engloba tudo o que está incluído na fórmula “realização e asseguração dos direitos fundamentais por meio de organização e procedimento”.
Veja que, pela explanação de Alexy, tal elemento aglutinador muito se aproxima da noção, já mencionada, de due process, pois o que se tem é um caminho procedimental projetado para a consecução de um resultado esperado ou, no mínimo, um iter que leve a um resultado possível dentro de uma moldura previamente delineada.
Evidentemente, o resultado que deve orientar tais direitos a organização e procedimento, em uma teoria como a analisada, é justamente a promoção e a proteção dos direitos fundamentais (2017, p. 473). Em outras palavras, a jusfundamentalidade de um direito, além de caracterizar o conteúdo em si desse direito, impregna todo o procedimento que está a serviço de sua realização.
Estabelecido esse ponto de partida conceitual, a dualidade entre substância e procedimento de um direito fundamental é examinada pelo autor sob a ótica dos direitos subjetivos, leia-se, indaga Alexy se para o titular de um direito fundamental há também o direito subjetivo a criação, pelo legislador, de procedimentos e organizações correspondentes a esse direito fundamental (problema da existência).
Nesse ponto em específico, os argumentos lançados na obra estão umbilicalmente associados à práxis jurisprudencial alemã, o que é uma abordagem esperada, pois, como dito, a teoria alexyana é uma “teoria jurídica geral dos direitos fundamentais da Constituição alemã”. Entretanto, em um exercício de abstração e generalização a partir de suas conclusões, o autor reconhece a fundamentalidade de direitos a procedimentos ligados ao acesso à Justiça, o que importa ao problema de pesquisa deste artigo, e também, o direito à proteção jurídica leva a um direito fundamental à proteção por meio de procedimentos a todos os direitos fundamentais (2017, p. 474-477).
Em um último segmento de análise do recorte teórico relativo aos direitos a organização e procedimento, ao lado de outros não mencionados nessa pesquisa, diz respeito à tipologia dessa categoria de direito, em vista da “variedade de formas e de conteúdos” (2017, p. 483). São identificados quatro tipos, a saber: competências de direito privado; procedimentos judiciais e administrativos (procedimento em sentido estrito); organização em sentido estrito; e formação da vontade estatal. Especificamente dois deles comportam uma aproximação argumentativa com as funções do Ministério Público conexas com a promoção e proteção dos direitos fundamentais, o que será buscado no tópico seguinte.
2.3. Aproximações argumentativas dos direitos a organização e procedimento à posição constitucional do Ministério Público Brasileiro em matéria de direitos fundamentais
Como discorrido no tópico inaugural deste desenvolvimento, o Ministério Público Brasileiro, em tempos atuais, é o produto de um longo processo de depuração político-institucional, todo ele marcado, ainda que de forma assistemática, pela progressiva instrumentalização da Instituição à promoção e proteção dos direitos fundamentais, especialmente em vista de conflitos de natureza metaindividual e que envolvem o Estado em sentido amplo.
Um dos marcos normativos desse movimento está na concepção e funcionalidade do inquérito civil e todo seu ferramental próprio, com destaque para o termo de ajustamento de conduta, instrumento que permite a aplicação negociada do direito e a solução extrajudicial de conflitos de relevo para a sociedade, muitas vezes em tempo e modo mais adequados do que a via judicial.
Por sua vez, como apontado no tópico intermediário deste desenvolvimento, a Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy é uma “teoria jurídica geral dos direitos fundamentais da Constituição alemã”. No direito germânico, entretanto, o Ministério Público desempenha funções estritamente penais, não havendo nenhuma atribuição em matéria cível (SZNICK, 1994, p. 124) e muito menos qualquer função projetada em vista dos direitos metaindividuais[18].
Logo, é compreensível que a posição político-institucional do Ministério Público e suas funções não se apresentaram como um objeto de interesse na construção da teoria alexyana. Contudo, em um sistema como o brasileiro, dada a conexão ontológica existente entre Ministério Público e os direitos fundamentais, não há como dedicar-se a qualquer pretensão teórica, de bases gerais, sem se voltar à compreensão analítica da Instituição Ministerial e de sua expressa missão constitucional e sua acomodação em uma teoria jurídica geral dos direitos fundamentais da Constituição brasileira.
Em razão disso, há um descampado teórico quanto à posição do Ministério Público em uma “teoria jurídica geral dos direitos fundamentais na Constituição brasileira” que tenha por substrato o pensamento de Robert Alexy. O problema de pesquisa deste artigo está neste descampado. Essa afirmação descortina algumas reflexões relevantes e conexas.
A primeira refere-se à dificuldade inerente a qualquer expediente de internalização de teorias estrangeiras, por mais qualificadas que sejam as formulações, o que somente se agrava se a teoria que se busca abrasileirar declaradamente é construída em vista de um direito positivo vigente em outro Estado, como se tem na teoria alexyana.
A segunda dificuldade, reflexo da primeira, está nos esperados ruídos teóricos que serão produzidos por qualquer labor nessa seara, em especial, como é o caso, se o objeto de análise não encontra paralelo no referencial do direito posto estrangeiro sobre o qual a teoria foi erguida. A terceira e última dificuldade, resíduo da segunda, está no indeclinável desafio teórico que tais brechas teóricas oferecem à comunidade acadêmica brasileira, a qual não pode, de um lado, reduzir o pensamento de Alexy apenas à máxima da proporcionalidade, nem deve, de outro lado, acomodar-se com a mera e literal internalização do pensamento deste autor, sem examinar aspectos diferenciados e relevantes do sistema jurídico brasileiro no que toca à construção de uma “teoria jurídica geral dos direitos fundamentais na Constituição brasileira”.
Uma tentativa de aproximação possível entre a teoria de Robert Alexy e o papel constitucional do Ministério Público Brasileiro na promoção e proteção dos direitos fundamentais pode ser pavimentada tendo por base a categoria dos direitos a organização e procedimento, dentro do organograma teórico já antecipado no tópico anterior, em particular os direitos a procedimento em sentido estrito e os direitos à formação da vontade estatal.
Os direitos a procedimentos em sentido estrito são, para Alexy, “direitos essenciais a uma proteção jurídica efetiva” (ALEXY, 2017, p. 488)[19], desdobrando-se em uma dimensão puramente procedimental (forma) e em outra associada ao conteúdo em si do direito fundamental, ao qual o procedimento serve.
Na formulação alexyana, a observância do procedimento aumenta a probabilidade de um resultado adequado à proteção dos direitos fundamentais; porém, tão só a observância estrita do procedimento não é garantia para esse resultado, sendo cabível e necessário também um controle do resultado em vista da dimensão material do direito fundamental em questão (2017, p. 489).
Projetada essa categoria à estrutura funcional do Ministério Público, não há como ignorar a vinculação do proceder ministerial à promoção e proteção dos direitos fundamentais em geral. Em outras palavras, as funções ministeriais, em particular aquelas desempenhadas diante de direitos metaindividuais, foram concebidas e estruturadas justamente para amparar a promoção e proteção dos direitos fundamentais.
Os procedimentos ministeriais têm por razão de ser constitucional o asseguramento dos direitos fundamentais, funcionando, de modo geral e abstrato, como um direito a procedimento em sentido estrito que se molda, diante do caso concreto, à garantia do direito fundamental em jogo em um conflito metaindividual.
Com isso, quer-se dizer que, mais do que um expediente em si, como o termo de ajustamento de conduta atingido por meio de um inquérito civil, o próprio proceder da Instituição Ministerial está associado à busca de resultados instrumentalizados estritamente à consecução dos direitos fundamentais, compondo sua essência constitucional no sistema brasileiro.
Por sua vez, os direitos à formação da vontade estatal, última categoria interna dos direitos a organização e procedimento, referem-se, para Alexy, a “direitos em face do Estado a que este, por meio de legislação ordinária, crie procedimentos que possibilitem uma participação na formação da vontade estatal” (2017, p. 498), tendo como exemplo primordial a criação de procedimentos que viabilizem a competência para votar.
Na ambiência funcional do Ministério Público, não se pode ignorar que a defesa do regime democrático foi expressamente catalogada como uma das objetividades jurídicas sob a tutela ministerial (art. 127, caput). Por conta disso, todo exercício funcional dessa Instituição, deve, a um só tempo, abrir-se aos influxos democráticos (ZIESEMER; ZOPONI, 2017, p. 25-34) e voltar-se à progressiva concretização e ampliação de espaços democráticos, aprofundando-se os meios de participação do cidadão na formação da vontade estatal, conferindo-se legitimidade à consecução dos direitos fundamentais realizada pelo Ministério Público.
Esse aspecto constitutivo da estrutura do Ministério Público revela que a própria existência constituição dessa Instituição já é uma concretização do direito à formação da vontade estatal, na exata medida em que a participação democrática na formatação da atuação ministerial fortalece o regime democrático e impulsiona a tutela ministerial dos direitos fundamentais.
A penetração democrática no Ministério Público pode se dar através de caminhos diversos, como, v.g., a realização de audiências públicas, seja no bojo de procedimentos específicos, com objeto determinado, seja em caráter periódico e em busca de identificar demandas sociais relevantes. Além disso, é possível contemplar a participação democrática na construção dos planos gerais de atuação do Ministério Público, renovados periodicamente, nos quais são fixadas as prioridades institucionais de atuação da Instituição.
Assim sendo, ainda que a categoria dos direitos à formação da vontade estatal tenha como destinatário o Estado-legislador, a manutenção e ampliação das funções do Ministério Público, inclusive com o incremento legislativo de suas ferramentas de atuação, são também uma concretização necessária aos direitos à formação da vontade estatal.
Como se vê, aspectos constitutivos e estruturais da própria Instituição Ministerial estão imbricados com procedimentos de promoção e proteção dos direitos fundamentais, em especial sob a roupagem metaindividual, trazendo para o interior do Ministério Público a jusfundamentalidade de todos os direitos fundamentais que estão sob sua tutela.
Nessa medida, a relação de estrita instrumentalidade das funções ministeriais com os direitos fundamentais, revelada, em breves linhas, pelos direitos a organização e procedimento, faz com que o Ministério Público componha o próprio conteúdo de múltiplos direitos fundamentais, ao se identificar o papel decisivo da Instituição como mecanismo para uma “proteção jurídica efetiva” (2017, p. 488).
A intensidade e profusão desse vínculo entre a Instituição Ministerial e os direitos fundamentais permite vislumbrar, ainda que em carecimento de maior fundamentação, um desdobro de direito fundamental autônomo, consistente no acesso à atuação de promoção e proteção dos direitos fundamentais pelo Ministério Público.
3. CONCLUSÃO
No presente artigo, o problema de pesquisa lançado teve por foco a posição do Ministério Público em matéria de direitos fundamentais no sistema jurídico-constitucional brasileiro, tendo por substrato teórico o pensamento estruturado por Robert Alexy em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais, com as necessárias acomodações argumentativas, já vista a inexistência de instituição congênere do direito germânico.
Essa relação entre o problema de pesquisa e seu referencial teórico permite uma constatação maior, a saber: o necessário cuidado no processo de internalização de qualquer teoria, sob pena de se descuidar de peculiaridades locais que se justapõem às estruturas elementares da teoria incorporada.
No caso em tela, o processo histórico-institucional do Ministério Público Brasileiro, com especial destaque ao marco normativo da Constituição de 1988, demonstrou a progressiva instrumentalidade dessa Instituição aos direitos fundamentais, em particular pela amplitude da tutela ministerial no campo dos direitos metaindividuais e por intermédio de ferramentas extrajudiciais de aplicação negociada do direito.
Não há como sonegar, em uma abordagem teórica que se pretenda própria à realidade jurídica brasileira, o papel do Ministério Público e sua conexão fundante com a promoção e proteção dos direitos fundamentais.
Para tanto, enquanto categoria teórica alexyana, um possível campo de investigação científica para o desenvolvimento do problema está nos denominados direitos a organização e procedimento, em especial as subespécies direitos a procedimento em sentido estrito e direitos à formação da vontade estatal. Em vista do primeiro, reconhece-se no Ministério Público a confluência de procedimentos próprios direcionais ao asseguramento dos direitos fundamentais, de modo que o próprio exercício funcional ministerial está orientado à consecução desse objetivo.
Já em relação ao segundo, identifica-se no Ministério Público uma instância de defesa e fortalecimento do regime democrático, seja pela participação popular nos assuntos ministeriais, seja por conta da própria atuação finalística da instituição, em concretização à participação popular na formação da vontade do Estado.
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[1] “Venho, por fim, ao instituto seguramente mais interessante e original da Constituição brasileira: o Ministério Público. Trata-se de uma figura dotada de uma extensa e complexa série de atribuições que, com exceção do nome, possui escassas semelhanças com o nosso Ministério Público. Não é apenas, simplesmente, como nos ordenamos europeus, o órgão da acusação pública. […]Trata-se, em suma, de uma instituição de garantia: uma instituição de garantia, precisamente, dos direitos sociais e do estado social de direito. Em um dúplice senso: como instituição de garantia de acesso à justiça; e como instituição de garantia dos direitos e dos interesses coletivos ou meta-individuais” (FERRAJOLI, 2009, p. 15).
[2] Com a Constituição de 1988, são lançados os contornos definitivos da Advocacia Pública no Estado Brasileiro, rompendo-se, de uma vez por todas, a associação indevida com as funções do Ministério Público.
[3] O presente artigo não buscará examinar, em nenhuma medida, as funções ministeriais no plano criminal. Contudo, en passant, o papel do Ministério Público como elemento estrutural de um sistema acusatório é um dos pilares de sustentação de um modelo de persecução penal condizente com o respeito dos direitos fundamentais, em que a condução da acusação estatal é realizada por uma Instituição imparcial e independente (Constituição da República, art. 129, inc. I e VIII) e a atividade policial é submetida ao controle externo ministerial (Constituição da República, art. 129, inc. VII).
[4] Para um estudo aprofundado do papel do Ministério Público como Instituição de intervenção no processo civil brasileiro, ainda que sob a ótica do Código de Processo Civil de 1973, vide Machado (1989).
[5] A fase instrumentalista do processo civil é uma decorrência do giro hermenêutico, da maior amplitude, realizado por Norberto Bobbio (2004). Segundo este autor, superada a era das declarações de direito (tutela jurídica estática), ao longo dos séculos XVIII e XIX, dever-se-ia avançar para a era da efetivação do direito (tutela jurídica dinâmica); por essa perspectiva, tão importante quanto a positivação de um direito, é a concepção de meios eficientes para garantir sua fruição (2004). Logo, ato contínuo, a discussão trasladada para o processo civil, na busca de se refinar o acesso à Justiça, para debelar óbices à fruição concreta de direitos. As ondas renovatórias, cunhadas por Cappelletti e Garth, resultam das conclusões de um projeto de pesquisa empírica – ‘Projeto Florença’, em que foram examinados o sistema de justiça de 25 países ao redor do mundo (o Brasil não foi incluído), para se identificar as principais dificuldades para a concretização dos direitos.
[6] Para uma rememoração histórica das discussões teóricas concernentes à (in)adequação de se conferir ao Ministério Público o papel de ente legitimado universal para as ações coletivas no direito brasileiro, vide Mazzilli (2012, p. 125-131).
[7] À previsão da Lei n. 7.347/1985 somou-se o regramento da Lei n. 8.072/1990, o Código de Defesa do Consumidor, os quais, ao lado de outros diplomas esparsos, compõem o sistema de tutela coletiva do direito brasileiro.
[8] ”Dentro do perfil institucional consagrado na Constituição de 1988, pode-se trabalhar dois modelos de Ministério Público: Ministério Público demandista e Ministério Público resolutivo. No primeiro modelo – Ministério Público demandista – o membro do Ministério Público tem como horizonte a atuação perante o Poder Judiciário. É um mero agente processual. […] No campo da defesa dos interesses coletivos e difusos, essa visão processual restringe os procedimentos administrativos e inquéritos civis a instrumentos de coleta de provas necessárias ao embasamento das ações civis públicas. O Ministério Público transfere para o Poder Judiciário, via ação civil pública, a solução de todas as questões que lhe são postas pela sociedade. Trata-se de um Ministério Público dependente do Judiciário. O resultado disso é desastroso, pois o Judiciário, em regra, responde mal às demandas que envolvem interesses coletivos e difusos, negando vigência aos novos direitos sociais consagrados na Constituição de 1988 e nas leis democratizantes. Esse Ministério Público demandista é o que hoje prevalece, embora não mais atenda às exigências da cidadania no mundo globalizado. Ao invés de um Ministério Público demandista, faz-se necessário um Ministério Público resolutivo, que leve às últimas consequências o princípio da autonomia funcional. […] Na esfera civil, não pode ficar na dependência das decisões judiciais. Deve ter como horizonte a solução direta das questões referentes aos interesses sociais, coletivos e difusos. Os procedimentos administrativos e inquéritos civis devem ser instrumentos aptos para tal fim. O Ministério Público deve esgotar todas as possibilidades políticas e administrativas de resolução das questões que lhe são postas (soluções negociadas), utilizando esses procedimentos com o objetivo de sacramentar acordos e ajustar condutas, sempre no sentido de afirmar os valores democráticos e realizar na prática os direitos sociais. Para tal, deve politizar e desjuridicionalizar sua atuação, ou seja, o Ministério Público deve: – transformar-se em efetivo agente político, superando a perspectiva meramente processual da sua atuação; – atuar integradamente em rede, aos mais diversos níveis – local, regional, estatal, comunitário e global –, ocupando novos espaços e habilitando-se como negociador e formulador de políticas públicas; […] – buscar a solução judicial depois de esgotadas todas as possibilidades políticas e administrativas de resolução das questões que lhe são postas (ter o Judiciário como espaço excepcional de atuação)” (GOULART, 2013, p. 119-122).
[9] Lei n. 8.625/1993, art. 27, par. ún., IV.
[10] Lei n. 7.347/1985, art. 5º, § 6º, incluído pela Lei n. 8.078/1990.
[11] Lei n. 8.625/1993, art. 27, par. ún., IV.
[12] Para um estudo aprofundado de cada um desses instrumentos e de suas potencialidades funcionais para o Ministério Público, vide Mazzilli (2012 e 2015), Gavronski (2010), Rodrigues (2011) e Ziesemer e Zoponi (2017), dentre outros autores de Direito Institucional.
[13] Constituição da República, art. 129, inc. III e Lei n. 7.347/1985, art. 8º, § 1º.
[14] Constituição da República, art. 129, inc. IV e Lei n. 7.347/1985, art. 8º, § 1º.
[15] Mazzilli assim define o TAC: ”Tal como está previsto no art. 5º, § 6º, da Lei n. 7.347/1985, o compromisso de ajustamento é um termo de obrigação de fazer ou não fazer, tomado por um dos órgãos públicos legitimados à propositura da ação civil pública ou coletiva, mediante o qual o causador do dano a interesses metaindividuais (meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, ordem urbanística etc.) se obriga a adequar sua conduta às exigências da lei, sob pena de cominações pactuadas no próprio instrumento, o qual terá força de título executivo extrajudicial” (2015, p. 304).
[16] “Desse esquema decorrem coisas diversas, dependendo do que se coloque no lugar de a, b e G. São extremamente importantes, do ponto de vista da dogmática dos direitos fundamentais, as diferenças entre as relações obtidas se se insere como a – o titular do direito – uma pessoa física ou uma pessoa jurídica de direito público; ou como b – o destinatário – o Estado ou um particular; ou como G – o objeto – uma ação positiva ou uma abstenção” (ALEXY, 2017, p. 194).
[17] Em comum, cada subespécie de direitos a prestações têm a mesma estrutura morfológica: “Enquanto direitos subjetivos, todos os direitos a prestação são relações triádicas entre um titular do direito fundamental, o Estado e uma ação estatal positiva. Se o titular do direito fundamental a tem um direito em face do Estado (s) a que o Estado realize a ação positiva h, então, o Estado tem, em relação a a, o dever de realizar h. Sempre que houver uma relação constitucional desse tipo, entre um titular de direito fundamental e o Estado, o titular do direito fundamental tem a competência de exigir judicialmente esse direito” (ALEXY, 2017, p. 445).
[18] Até mesmo a figura do ombudsman, muitas vezes trazida como instituição paralela ao Ministério Público em países estrangeiros, tem sido implementada na Alemanha de modo fragmentado e sem uma correlação com a amplitude das funções ministeriais no Brasil. Exemplo disso é a recente implementação da figura do ombudsman bancário para atuar como mecanismo de resolução de conflitos dessa natureza entre instituições e consumidores, em alternativa ao Poder Judiciário.
[19] Ao que se segue o seguinte excerto: “É condição de uma proteção jurídica efetiva que o resultado do procedimento proteja os direitos materiais dos titulares de direitos fundamentais envolvidos. A essa proteção de direitos materiais deve ser vinculada a fórmula do Tribunal Constitucional Federal, que descreve a tarefa do direito procedimental da seguinte forma: “O direito procedimental serve à produção de decisões que sejam conformes à lei e, por esse ponto de vista, corretas, mas, para além disso, de decisões que, no âmbito dessa correção, sejam justas”. Tudo isso indica que, no âmbito do procedimento, dois aspectos devem ser relacionados entre si: um procedimental e um material” (ALEXY, 2017, p. 488).
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