Ao longo do tempo, o crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho ocorreu em virtude de fatores econômicos e culturais, verificando-se o aumento principalmente a partir da Revolução Industrial, século XVII, quando a mão de obra feminina passou a ser mais utilizada com o surgimento de máquinas, tornando não tão essencial o esforço físico próprio dos homens[1]. Naquele momento, a força de trabalho das mulheres passou a ser bem aceita, especialmente porque faziam o mesmo trabalho e aceitavam salários inferiores aos salários dos profissionais do sexo masculino. Além disso, cumpriam jornadas de até dezessete horas diárias e ainda cuidavam da casa e dos filhos[2].
Breve retrospectiva histórica demonstra que nos últimos anos a necessidade de aumento da renda familiar propiciou o aumento de oportunidades nos postos de trabalho, o que foi acompanhado pelas mulheres, que buscaram constantemente a formação e o desenvolvimento profissional. Nos dias atuais, mesmo trabalhando, mulheres dedicam mais horas às atividades de casa do que homens.[3], como aliás, já se verificava séculos antes, lembrando o que ocorria no século XVIII.
O conceito de meio ambiente do trabalho designa o espaço onde o trabalhador exerce suas atividades laborais[4], e abrange também as condições de trabalho. Em tempos de pandemia, a verdade é que esse meio ambiente foi transposto para o lar, isto é, o domicílio das pessoas. Barulho excessivo de vizinhos, para profissionais que exercem suas atividades em home office/teletrabalho[5], por exemplo, passou a ser muito mais do que um aborrecimento, mas um problema para a execução das tarefas profissionais e perante o empregador.
É fundamental que se realize ligeira digressão para se alcançar um conceito mais amplo de jornada de trabalho e do meio ambiente em que o trabalho é executado. Deve-se ter uma visão libertada de conceitos predeterminados, a fim de compreender e discernir entre o que deveria acontecer e o que realmente acontece; uma visão humanizada do contexto das relações trabalhistas.
Analisando especificamente o meio ambiente de trabalho atual das mulheres, verifica-se que a pandemia COVID-19, a suspensão das aulas presenciais e outros elementos transformaram a vida profissional das trabalhadoras. A título de ilustração, tem-se que além de exercerem suas atividades em home office, aquelas que possuem filho(a)s acabaram sendo sobrecarregadas com o ensino remoto, participando direta e ativamente das atividades escolares propostas, tudo sem deixar de cuidar das tarefas domésticas e sem falhar em relação às atribuições profissionais.
Na prática, as mulheres que trabalham têm o que se denomina dupla jornada: após encerrar o expediente e as tarefas profissionais elas não descansam, pois continuam trabalhando. Ainda existe, é bem verdade, uma divisão preponderantemente sexista de tarefas do lar, o que não raras vezes ocorre por haver um entendimento tácito ou expresso – até por parte delas – de que funções domésticas lhes compete exclusivamente, já tendo trabalhado o dia inteiro ou não.
Além disso, com a pandemia COVID-19 e analisando o meio ambiente de trabalho, tem-se situações de mães que trabalham enquanto cuidam, simultaneamente, do(a)s filho(a)s[6]; digitam textos enquanto amamentam; trabalhadoras que esquentam mamadeiras e falam ao telefone; se reportam ao chefe por vídeo chamada ou participam de reuniões e acabam tendo que retirar o áudio ou vídeo rapidamente porque seus filhos demandaram atenção; escrevem relatórios e e-mails enquanto os ajudam nas lições e tantas outras situações que nem caberiam no texto[7].
Dirigindo as atenções para o tema saúde mental, tem-se que mães trabalhadoras se sentem culpadas por trabalhar e por nem sempre conseguir conciliar a atenção demandada pelos filhos com o trabalho.[8] Dados apontam no sentido de que mães que trabalham durante a pandemia têm a saúde mental mais comprometida[9]. Verifica-se a ocorrência de prejuízos para a saúde da trabalhadora, ocasionando, inclusive, o consumo exagerado de bebidas alcoólicas em virtude da sobrecarga de trabalho[10], como aponta outra pesquisa. Para piorar e em acréscimo ao que foi descrito, mulheres ainda são mais xingadas e tem o trabalho mais supervisionado do que os homens[11]; a discriminação também está presente na exigência de melhor desempenho e na tendência de desvalorização da atividade.
Esta digressão precisa ser abordada porque se está examinando o contexto e o meio ambiente de trabalho em que as mulheres exercem suas atividades profissionais durante a pandemia COVID-19. Como se observa, existem outros fatores que incidem diretamente na jornada estabelecida e contratada pelo empregador.
Com efeito, as pesquisas demonstram, inexoravelmente, que apesar da evolução dos direitos das mulheres e das relações trabalhistas ainda há muito a ser aprimorado e um longo caminho a ser percorrido, principalmente em razão do home office e da jornada de trabalho híbrida, modalidades que, ao que tudo indica, chegaram para ficar, sendo cada vez mais frequentes em razão da pandemia COVID-19. Por estes motivos, o meio ambiente de trabalho precisa ser reinterpretado e conceitos devem ser revisitados.
É fundamental que as organizações incluam medidas eficazes de combate às práticas discriminatórias contra a mulher nas relações de trabalho, em reverência ao compliance trabalhista e a fim de estimular um ambiente de trabalho saudável e mais produtivo, mesmo que seja virtual/remoto, obviamente dentro de limites e de acordo com a razoabilidade do que lhe pode ser exigido, até porque está fora do alcance do empregador práticas que estão, infelizmente, ainda enraizadas na sociedade, como por exemplo a divisão sexista de tarefas domésticas anteriormente mencionada.
Com a adoção cada vez mais frequente do home office, outros benefícios ou instrumentos de retenção de talentos podem ser adotados/pensados pelas organizações. Como se sabe, não é a remuneração o único instrumento para a retenção de profissionais talentosos. Sabe-se que é o potencial humano, ou seja, a capacidade das pessoas, o verdadeiro diferencial em um mercado globalizado e competitivo. Exercer atividades profissionais com empregadores que respeitam o trabalhador e, bem assim, favorecem o bom ambiente de trabalho – seja ele onde for – são fatores sopesados e valorizados quando tomadas decisões a respeito da carreira.
Cabe aos operadores do direito a tarefa de auxiliar as mulheres na busca pelo esclarecimento de seus direitos, pela igualdade de condições e pelo respeito à dignidade, que é devido a todos, independente de sexo, condição social, cor e religião.
Não raras vezes e infelizmente, os direitos fundamentais podem ser encontrados nas normas positivadas, mas nem sempre são aplicados no dia a dia, como deveriam ser. Espera-se que não só as legislações avancem, mas também a consciência da sociedade continue evoluindo para que as mulheres tenham o tratamento e o reconhecimento que merecem.Nada mais, nada menos.
[1] Verifica-se que muitas mulheres sustentam o lar e são as principais geradoras de renda da família. Nesse sentido: https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2020/02/16/internas_economia,1122167/quase-metade-dos-lares-brasileiros-sao-sustentados-por-mulheres.shtml
[2] “O papel da mulher na indústria”. Disponível em https://www.sesipr.org.br/informacoes-sst/o-papel-da-mulher-na-industria-1-33630- 433465.shtml#:~:text=Na%20Revolu%C3%A7%C3%A3o%20Industrial%20houve%20a,menores%20que%20os%20dos%20homens. Acesso em 28 dez 020
[3]Disponível em https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2020/06/04/mesmo-empregadas-mulheres-dedicam-8-horas-a-mais-do-que-homens-nos-afazeres-da-casa.ghtml. Acesso em 29 dez 2020.
[4] SILVA, José Felippe Rangel da. O meio ambiente do trabalho Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF: 02 jan 2021. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/51855/o-meio-ambiente-do-trabalho. Acesso em: 02 jan 2021.
[5] Existem diferenças conceituais entre o home office e o teletrabalho, como muito bem abordado no texto Home office e os riscos trabalhistas, de autoria do professor Ricardo Calcini e Dino Araújo de Andrade. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-set-10/pratica-trabalhista-home-office-riscos-trabalhistas. Acesso em 02 jan 2021.
[6] Disponível em https://cultura.uol.com.br/noticias/13657_desigualdade-50-das-mulheres-em-home-office-cuidam-dos-filhos-enquanto-trabalham.html. Acesso em 03 jan 2021.
[7] Em abono do que veio a dizer, mais adiante será citada pesquisa que aborda os problemas decorrentes da divisão desigual de tarefas.
[8] Disponível em https://6minutos.uol.com.br/carreira/maes-em-home-office-precisam-se-livrar-da-culpa-de-nao-dar-conta-dos-filhos-e-do-trabalho/ Acesso em 29 dez 2020
[9] Disponível em https://www.medicina.ufmg.br/pandemia-compromete-saude-mental-das-maes/. Acesso em 27 dez 2020.
[10] Disponível em https://www.metropoles.com/vida-e-estilo/comportamento/mulheres-estao-bebendo-mais-na-quarentena-afirmam-estudos. Aceso em 27 dez 2020.
[11] Disponível em https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencia-sexual/40-das-mulheres-dizem-que-ja-foram-xingadas-ou-ouviram-gritos-em-ambiente-de-trabalho-contra-13-dos-homens-diz-pesquisa/ Acesso em 29 dez 2020.
Excelente artigo, atual e empático. Traduz a realidade de grande parte das mulheres.
Parabéns!
É uma realidade, Ellen Pires! Obrigada por comentar!
O artigo retrata a realidade de muitas mulheres. Tema importantíssimo de ser lembrado. Parabéns!
Com certeza, Lisandra! Obrigada!
Parabéns Juliana Schmitz Sardinha,você foi bastante exclarecedora. Obrigada.
Que bom que gostou, Sandra!
Já li diversos textos sobre direito do trabalho e proteção do trabalho da mulher, mas nenhum que retratasse tão bem a realidade.
Compartilho do entendimento de que a tão sonhada igualdade constitucional esteja sequer próxima. Parabéns pelo excelente texto que induz a coletividade à reflexão.
Muito obrigada pelo seu comentário, dra. Bianca Berti! Fico feliz que tenha gostado do artigo.
Excelente artigo!
Demonstra claramente os desafios no dia a dia das mulheres, seja pessoalmente ou profissionalmente.
Parabéns blog Mizuno, parabéns Juliana Sardinha!
Muito obrigada, Patrícia Mayworm!
Muito bom seu texto, Juliana! Apesar de já haver encerrado minhas atividades laborais por conta do tempo trabalhado, enxergo nas minhas filhas e nora essa real problemática tão bem descrita por você. E espero que venham novas normas, ou mesmo leis, que possam ordenar e facilitar o trabalho remoto das mulheres brasileiras.
Muito obrigada por seu comentário, Flavia Bordeira! Fico feliz que tenha gostado do texto!