RETROATIVIDADE BENÉFICA NA NOVA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA[1]
1 – BREVE RESUMO SOBRE A PROBLEMATIZAÇÃO DO ASSUNTO.
Segundo a nova redação do artigo 1°, §4°, da Lei de Improbidade Administrativa (acrescido pela Lei n°14.230/2021), consignou-se expressamente que “aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.”
Trata-se de preceito que positiva a visão majoritária da doutrina e da jurisprudência pátrias no tocante às garantias que devem ser asseguradas a quem é investigado ou processado na seara cível da improbidade administrativa.
Ocorre que, dessa redação e do inteiro teor das mudanças realizadas na Lei n°8.429/92 (muitas imoralmente mais benéficas para os réus, investigados e condenados por esse tipo de ilícito), já surge celeuma na teoria e na prática sobre os diversos efeitos práticos desse preceito, em especial por conta da suposta aplicabilidade irrestrita do contido no artigo 5°, LX, da Constituição Federal[2] aos processos e inquéritos em curso, quiçá às condenações existentes.
Resumidamente, podemos apontar 3 (três) questões principais de destaque:
a) Viabilidade do trancamento imediato das investigações e ações judiciais em curso, referentes aos atos de improbidade administrativa que foram revogados, ou que tiveram redação alterada com elementos normativos adicionados pela Lei n°14.230/2021, tornando “atípicos” os comportamentos até então vigentes na Lei n°8.429/92.
b) Possibilidade de revisão/rescisão das condenações judiciais ou anulação das decisões administrativas que se basearam em tipificações revogadas, ou que tiveram redação alterada com elementos normativos adicionados pela Lei n°14.230/2021, tornando “atípicos” os comportamentos até então vigentes na Lei n°8.429/92.
c) Incidência imediata dos novos prazos prescricionais, em especial da prescrição intercorrente.
2 – A TESE DA RETROATIVIDADE ABSOUTA.
Já se percebe no meio acadêmico e forense um movimento no sentido de aplicação retroativa absoluta das disposições mais benéficas aos acusados e condenados por atos de improbidade administrativa, de modo a legitimar-se a o trancamento imediato das investigações e ações em curso, bem como a revisão das decisões judiciais transitadas em julgado ou anulação das decisões administrativas, e a incidência imediata dos prazos prescricionais.
Trata-se de visão sedutora, calcada na suposta incidência irrestrita do artigo 5°, LX, da CF/88, e que conta com o respaldo jurisprudencial do STJ quando se fala de incidência sobre os processos administrativos disciplinares. Senão, vejamos:
– “A norma administrativa mais benéfica, no que deixa de sancionar determinado comportamento, é dotada de eficácia retroativa. Precedente: REsp 1.153.083/MT, Rel. p/ Acórdão Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 19/11/2014).” (STJ, REsp 1402893/MG, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 11/04/2019, DJe 22/04/2019).
– “Tratando-se de diploma legal mais favorável ao acusado, de rigor a aplicação da Lei Municipal n. 13.530/03, porquanto o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador. Precedente. Dessarte, cumpre à Administração Pública do Município de São Paulo rever a dosimetria da sanção, observando a legislação mais benéfica ao Recorrente, mantendo-se indenes os demais atos processuais. Precedentes.” (STJ, RMS 37.031/SP, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/02/2018, DJe 20/02/2018).
Com todo o respeito aos que pensam assim, é preciso chamar atenção que essa tese não pode incidir no caso da forma como pretendem, pois disso pode surgir, além da violação ao princípio da proporcionalidade no tocante à proteção deficiente ao direito fundamental anticorrupção, inegáveis prejuízos concretos aos próprios investigados (como o alargamento do prazo prescricional de quem comete um ato em 2021 e cujo mandato acaba em 2022 – na hipótese haveria 2 anos a mais se usado o novo regime, ao invés do estatuído pela antiga redação do artigo 23 da Lei n°8.429/92).
E deve-se lembrar que, usando a mesma hermenêutica penal, não é possível incidir retroativamente um trecho da lei nova (na parte que interessa) e outro da lei antiga (quando mais favorável), sob pena de termos uma terceira lei aplicável conforme as conveniências, o que é vedado pacificamente pela doutrina e jurisprudência pacíficas.
Nesse tocante, vale a pena conferir o magistério do Supremo Tribunal Federal (STF), fixado em regime de repercussão geral:
“II – Não é possível a conjugação de partes mais benéficas das referidas normas, para criar-se uma terceira lei, sob pena de violação aos princípios da legalidade e da separação de Poderes. III – O juiz, contudo, deverá, no caso concreto, avaliar qual das mencionadas leis é mais favorável ao réu e aplicá-la em sua integralidade.”(RE 600817, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 07/11/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014 RTJ VOL-00236-01 PP-00204).
Não bastasse isso, considerando-se constitucionais as modificações realizadas (e essa é a presunção do nosso regime jurídico, a despeito de muitas serem questionáveis), é preciso realizar uma interpretação à luz da vedação ao retrocesso no combate à corrupção, de observância cogente no Brasil à luz da Convenção de Mérida, da qual o Brasil é signatário e que a ratificou pelo Decreto Federal n°5.687/20006.
Assim, propomos uma tese alternativa, explicada a seguir.
3 – A TESE DA APLICAÇÃO PRO FUTURO (RETROATIVIDADE A PRIORI VEDADA POR FORÇA DO PRINCÍPIO DA “TUTELA MÍNIMA ANTICORRUPÇÃO”[3]).
Como pontuamos acima, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), há tempos, reconhece a possibilidade de incidência do postulado penal da retroatividade mais benéfica no âmbito do direito administrativo sancionador, usando como parâmetro o disposto no artigo 5°, LX, da Constituição Federal.
Trata-se de entendimento correto e que, a priori, incidiria no caso dos atos de improbidade administrativa. Entretanto, alguns fatores nos levam a crer que é preciso um temperamento no caso, como, aliás, já ressaltou a própria Corte de Justiça:
“6. A diferença ontológica entre a sanção administrativa e a penal permite a transpor com reservas o princípio da retroatividade.
Conforme pondera Fábio Medina Osório, ‘se no Brasil não há dúvidas quanto à retroatividade das normas penais mais benéficas, parece-me prudente sustentar que o Direito Administrativo Sancionador, nesse ponto, não se equipara ao direito criminal, dado seu maior dinamismo.
7. No âmbito administrativo, a sedimentação de decisão proferida em PAD que condena servidor faltoso (acusado de falta grave consistente na cobrança de custas em arrolamento em valor aproximadamente mil vezes maior) não pode estar sujeita aos sabores da superveniente legislação sobre prescrição administrativa sem termo ad quem que consolide a situação jurídica. Caso contrário, cria-se hipótese de instabilidade que afronta diretamente o interesse da administração pública em manter em seus quadros apenas os servidores que respeitem as normas constitucionais e infraconstitucionais no exercício de suas funções, respeitadas as garantias do due process.
8. Precedente em situação similar indica: “quanto à alegação de prescrição administrativa, questão que em tese poderia determinar a anulação do ato que cassou a nomeação do recorrente na função de Oficial do Registro de Imóveis da Comarca de Palhoça/SC, verifica- se que as leis apresentadas (9.873/99 e 9.784/99) foram editadas após a ocorrência da nomeação do recorrente em 1992 e após o próprio ato de cassação ocorrido em 1998, não podendo retroagir para alcançar a situação do recorrente. Precedentes: RESP nº 646107/RS, Rel. Min.
Francisco Falcão, DJ de 14/03/2005; MS 9092/DF, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJ 25.09.2006 e EDcl no AgRg no RESP nº 547668/PE, Rel.
Min. Gilson Dipp, DJ de 02/05/2005″ (AgRg no AgRg no REsp 959.006/SC, Relator Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, DJ 7.5.2008).
9. Recurso Ordinário não provido.”(STJ, RMS 33.484/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/06/2013, DJe 01/08/2013).
Não bastasse isso, é importante lembrar que os atos de corrupção (dos quais os de improbidade administrativa são espécies) gozam da proteção contra o retrocesso legislativo, como está consignado no artigo 65, n°2, da Convenção da ONU de Combate à Corrupção (Convenção de Mérida)[4], de modo que a revogação dos tipos outrora existentes ou a mudança dos elementos normativos não pode incidir sobre os processos cíveis já julgados ou em curso, bem como nas investigações, condicionando o agir estatal somente daqui para frente.
Imaginemos os casos (meramente exemplificativos) de tortura policial, perseguição política em ano eleitoral, peculato culposo, prevaricação, condescendência criminosa, concessão fraudulenta de licenciamento ambiental e outros ilícitos que deixaram de configurar atos de improbidade administrativa com a revogação dos incisos I e II do artigo 11, da Lei n°8.429/92, mas que continuam a configurar crimes específicos e graves.
Seria justo que os autores de atos com tal gravidade recebessem o beneplácito do arquivamento, mesmo seus comportamentos possuindo correlação criminal e administrativa, ou, na pior das hipóteses, ostentando o autor condenação criminal pelo fato correlato?
Parece-me que não!
É preciso ter-se em conta que a tutela efetiva da probidade administrativa é decorrência lógica da ordem jurídico-constitucional de toda e qualquer República, já existindo manifestações doutrinárias[5] e jurisprudenciais do direito difuso à probidade administrativa (tutelado como cláusula pétrea[6]), de modo que estamos diante de uma suposta colisão de direitos fundamentais, não havendo razão para a solução a priori favorável aos condenados, processados e investigados por atos ímprobos, em detrimento dos interesses sociais subjacentes à punição dos infratores legais, que podem, inclusive, ostentar condenações criminais pelos mesmos fatos.
Como explicar a juridicidade, por exemplo, de alguém ser (ou poder ser) condenado na Justiça Criminal por um fato e, ao mesmo tempo, ter sua ação/investigação de improbidade administrativa correlata extinta exatamente pela aplicação irrestrita da “retroação mais benéfica da lei penal”. Seria uma contradição literal!
É importante lembrar que o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao analisar o pretenso efeito retroativo do Novo Código Florestal diante dos “benefícios” advindos com tal legislação, seguiu caminho hermenêutico similar, limitando os efeitos favoráveis.
Senão, vejamos:
– “A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que, em se tratando de matéria ambiental, deve-se analisar a questão sob o ângulo mais restritivo, em respeito ao meio ambiente, por ser de interesse público e de toda a coletividade, e observando, in casu, o princípio tempus regit actum.” (AgInt no AREsp 1145207/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 09/08/2021, DJe 13/08/2021).
– “No que concerne à alegação de violação do art. 2º, caput, I, III e IV, da Lei n. 6.938/81; art. 6º, § 2º, do Decreto-Lei n.4.657/42, com razão o recorrente a esse respeito, uma vez que o acórdão recorrido, ao admitir o cômputo das áreas de preservação permanente no cálculo da reserva legal, divergiu da jurisprudência desta Corte, segundo a qual, em matéria ambiental, deve prevalecer o princípio tempus regit actum, de forma a não admitir a aplicação das disposições do novo Código Florestal a fatos pretéritos, sob pena de retrocesso ambiental. Nesse sentido: AgInt nos Edcl no Resp 1715932/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 22/04/2020, Dje 24/04/2020; AgInt no Resp 1747644/SP, Rel.Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 19/02/2019, Dje 26/02/2019.” (AgInt nos Edcl no Resp 1722410/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/11/2020, Dje 01/12/2020).
O mesmo se diga quanto aos prazos prescricionais, em especial o da intercorrente (que levará dezenas de milhares de feitos ao imediato arquivamento), pois a aplicação retroativa viola, para além da Convenção de Mérida, o artigo 6° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que estabelece claramente:
Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.
Ora, na seara processual, é conhecido o postulado do tempus regit actum, de modo que cada ato processual realizado sob o regime anterior é um ato jurídico perfeito e não se pode, do dia para noite, ter-se como válida cláusula que impõe uma sanção processual antes inexistente.
Assim, os prazos prescricionais e os respectivos marcos interruptivos ou suspensivos (inseridos pela Lei n°14.230/2021), devem incidir daqui para frente, como decide, reiteradamente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Vejamos um dos precedentes mais atuais:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ARTIGO 174 DO CTN. AJUIZAMENTO E DESPACHO DE CITAÇÃO ANTES DA VIGÊNCIA DA LC 118/2005. INÉRCIA DO PODER JUDICIÁRIO. SÚMULA 106 DO STJ. APLICAÇÃO DO ART. 219, § 1º, DO CPC/73. CONCLUSÃO FIRMADA NA ORIGEM COM AMPARO NO CONTEXTO FÁTICO DOS AUTOS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7 DO STJ.
1. A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em 13.5.2009, no julgamento do REsp. 999.901/RS, representativo da controvérsia, firmou o entendimento no sentido de que a LC 118/2005 ? que alterou o art. 174 do CTN para atribuir ao despacho do Juiz que ordenar a citação, em execução fiscal, o efeito interruptivo da prescrição tem aplicação imediata aos processos em curso, desde que o aludido despacho haja sido proferido após sua entrada em vigor (9.6.2005).
2. No caso dos autos, a Execução Fiscal foi ajuizada antes da vigência da Lei Complementar 118/2005, de modo que a regra regente é a anterior ao advento da referida lei, qual seja, a de que somente a citação válida interrompe a prescrição, não sendo possível atribuir tal efeito ao despacho que ordenar a citação.
3. Outrossim, por ocasião do julgamento do REsp. 1.120.295/SP, da relatoria do eminente Ministro Luiz Fux, submetido à sistemática do art. 543-C do CPC, firmou-se o entendimento de que, mesmo nas Execuções Fiscais, a citação retroage à data da propositura da ação para efeitos de interrupção da prescrição, na forma do art. 219, § 1º. do CPC, desde que não tenha havido inércia do exequente.
4. Ao decidir a controvérsia o Tribunal de origem assim consignou (fls. 274/275, e-STJ): “Ocorre que, analisando o caderno processual, vê-se que o decurso de prazo superior a 5 (cinco) anos previsto no artigo 174 do CTN, com a redação anterior à alteração introduzida pela Lei Complementar nº 118/2005 entre a constituição do crédito tributário e a citação do devedor, na hipótese, ocorreu exclusivamente por motivos inerentes ao mecanismo da justiça, o que atrai a incidência do enunciado sumular supracitado [Súmula 106 do STJ]”. (AgInt no AREsp 1782843/PB, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 09/08/2021, DJe 16/08/2021).
Essa lógica prevalece com maior razão no caso da prescrição intercorrente se a mora for de responsabilidade do Poder Judiciário ao não dar o regular andamento às ações de improbidade administrativa, como aponta a ratio subjacente ao Enunciado n°106, da Súmula de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:
– “Proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da Justiça, não justifica o acolhimento da argüição de prescrição ou decadência.”
De igual modo, a tese fixada no tema 179 dos recursos repetitivos da mesma Corte (STJ), segundo a qual “a perda da pretensão executiva tributária pelo decurso de tempo é consequência da inércia do credor, que não se verifica quando a demora na citação do executado decorre unicamente do aparelho judiciário.”
3.1 – EXCEÇÃO À REGRA PRO FUTURO DIANTE DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E “PRO HOMINE”.
Ontologicamente, improbidade administrativa está associada à ideia de corrupção, ou à prática de atos ilícitos imbuídos de má-fé e desonestidade (intelectual ou patrimonial)[7], motivo pelo qual, mesmo antes da Lei n°14.230/2021, parte da doutrina já defendia a injustiça do enquadramento dado pelo artigo 10 da Lei n°8.429/92, ao permitir condenações culposas, ainda que “graves” nos exatos termos do disposto no artigo 28 da LINDB[8] e da própria jurisprudência do STJ (que exigia a diligência acima do normal por parte do agente público)[9].
Com as modificações operadas pela Lei n°14.230/2021 na Lei de Improbidade Administrativa (artigo 1°, §§1° e 2° c/c artigo 10, caput; artigo 11, §§1° e 2°), não há dúvidas que a forma culposa foi abolida do sistema jurídico da improbidade administrativa, adotando-se a tese “garantista” de que culpa e desonestidade não caminham juntas. Não se pode desconsiderar as razões teóricas desse ponto de vista.
E mais: considerando que os atos de improbidade administrativa previstos no artigo 10 da Lei n°8.429/92 correspondem a tipos penais que, via de regra, não admitem a forma culposa, o “retrocesso” aí é somente persecutório, pois há, no nosso sentir, uma adequação e uniformização do sistema jurídico.
Não fazia muito sentido alguém ser desonesto/corrupto no campo penal somente por meio do dolo e, no campo cível da improbidade administrativa, poder ostentar aquela qualificação por meio da culpa, ainda que grave.
Essa é uma marcha legislativa clara.
Vejamos o caso da dispensa indevida de licitação por descumprimento das formalidades legais. O artigo 337-E do Código Penal (inserido pela Lei n°14.1333/2021) excluiu essa modalidade delitiva que constava do artigo 89 da Lei n°8.666/93 (num típico caso de “abilitio criminis” confome a ampla doutrina sobre o assunto) e que era enquadrável como ato de improbidade administrativa culposo (antigo artigo 10, VIII, da Lei n°8.429/92). Como justificar que o réu no processo penal será absolvido pela atipicidade superveniente, mas a ação cível de improbidade decorrente daquele comportamento culposo continuaria tramitando? Ainda que a coisa julgada desse tipo de sentença penal não possua a eficácia absoluta dentro da lógica do princípio da independência das instâncias, é razoável permitir a extensão dos efeitos, ainda mais porque estamos a falar de culpa, ontologicamente dissonante da ideia de corrupção e má-fé.
Assim, nessa hipótese restrita (dos atos de improbidade administrativa culposos), há de prevalecer a dignidade humana (artigo 1°, inciso III, CF/88) e o direito humano à retroação benéfica (previsto no artigo 9° da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica) daqueles que são ou foram processados/investigados por atos de improbidade administrativa na modalidade culposa, pois se representam indiferentes penais na área de corrupção não é justo que prevaleçam na área cível.
Essa foi uma opção legislativa, lamentável em alguns casos, mas que precisa ser respeitada sob o ponto de vista democrático. Afinal, foi isso que a população escolheu “por meio de seus representantes eleitos”, que legislaram (muitos) em causa própria.
Uma observação ainda precisa ser feita para evitar um injusto e imoral “efeito manada absolutório”: o reconhecimento da “abolitio illicit” ora defendida só deve ocorrer após uma análise (ex officio ou provocada ao MP) da imputação feita nas investigações e dos elementos probatórios constantes das ações judiciais, pois tudo pode ter começado baseando-se em ato culposo, mas os depoimentos e demais documentos colhidos podem apontar a prática de ato doloso.
Nunca é demais lembrar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconhece, há tempos, que a imputação não vincula o juízo, de modo que a condenação ou absolvição advém do que resta provado dos autos, e não do que o novo e inconstitucional artigo 17, §10-C da Lei de Improbidade), sob pena de violação aos princípios da inafastabilidade jurisdicional (artigo 5°, XXXV, CF/88) e do livre convencimento motivado do Poder Judiciário (artigo 93, IX, CF/88).
Por fim, é importante dizer que o reconhecimento da “abolitio illicit” no tocante às improbidades culposas não impede o prosseguimento das ações de improbidade com o fim de ressarcimento integral ao erário, princípio inerente ao sistema jurídico nacional[10] e internacional[11]. Observe-se que essa hipótese não é caso de conversão judicial, como determina o artigo 17, §16 da Lei de Improbidade (pois o ato de improbidade existiu), de modo que a ação deve tramitar para aquele fim.
4 – CONCLUSÃO.
Diante de tudo o que foi exposto acima, entendemos que os atos de improbidade administrativa dolosos praticados anteriormente à Lei n°14.230/2021 continuam submetidos à normatividade vigente à época dos fatos, devendo as ações e investigações tramitarem regularmente, mesmo que diante da revogação e especialmente quando os ilícitos tiverem a respectiva correspondência penal, pois estar-se-á (caso contrário) diante de um retrocesso na tutela da probidade administrativa, o que é vedado pela ordem jurídica nacional após a incorporação da Convenção de Mérida em 2006.
A única exceção admitida é no caso das improbidades culposas, cuja tipificação penal também não admita essa modalidade.
Já quanto os prazos prescricionais, estes só incidem sobre os atos praticados a partir de 25/10/2021 (data da vigência da Lei n°14.230/2021), não podendo haver decretação de prescrição intercorrente quando a inércia for de responsabilidade do Poder Judiciário (seja pela morosidade na condução, seja pelo assoberbamento dos processos sem a quantidade de magistrados suficientes para dar o regular andamento aos feitos).
[1] Trecho extraído do livro “Nova Lei de Improbidade Administrativa Comentada” (Editora Mizuno), de nossa coautoria.
[2] XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu
[3] PINHEIRO, Igor Pereira. Improbidade Administrativa no STF e STJ. Leme/SP:Mizuno. 1ªedição, 2021.
[4] “Aplicação da Convenção 1. Cada Estado Parte adotará, em conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, as medidas que sejam necessárias, incluídas medidas legislativas e administrativas, para garantir o cumprimento de suas obrigações de acordo com a presente Convenção. 2. Cada Estado Parte poderá adotar medidas mais estritas ou severas que as previstas na presente Convenção a fim de prevenir e combater a corrupção.
[5] “Matthew Murray e Andrew Spalding, em artigo intitulado ‘Freedom from Official Corruption as a Human Right’, defendem a ideia de que o direito de viver em um ambiente livre de corrupção deveria figurar entre os direitos humanos, apresentando, em defesa desta tese, quatro argumentos. (…) O segundo argumento de Murray e Spalding é de que a elevação de status colocaria as leis que tratam de corrupção à frente de outras, eis que, quando os direitos humanos são violados, a comunidade internacional fica obrigada a agir. (…) As implicações práticas dessa categorização seriam imediatas na legislação de qualquer país, pois todo o arcabouço normativo de combate à corrupção passaria a ser interpretado e aplicado a partir de um novo contexto: Como principais diretrizes principiológicas e interpretativas, relativas aos direitos e garantias constitucionais fundamentais, decorrentes da dupla conjugação de caráter subjetivo e objetivo, destacam-se, como exemplos, a imprescritibilidade, a aplicabilidade imediata, a imunidade em relação ao legislador infraconstitucional, o caráter pétreo desses direitos, a interpretação aberta e extensiva, a não taxatividade ou não limitação; a proteção integral etc.” (ZENKNER, Marcelo. Integridade Governamental e Empresarial – Um espectro da repressão e da prevenção à corrupção no Brasil e em Portugal. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p.88-89). No mesmo sentido: “Esses dados pondo à nu os multi-perversos efeitos da corrupção sobre a ordem política e econômica tem dado espaço para que alguns juristas comecem a enxergar um direito humano autônomo, o direito a um poder público livre da corrupção. O primeiro a mencionar esse direito não como decorrência de vulnerações de outros direitos humanos já reconhecidos foi Kofele-Kale. O autor argui que em relação aos grandes esquemas de corrupção, em especial em países em desenvolvimento, em que o ato de corruto representa graves prejuízos para a população e sua riqueza, causando sérias dificuldades para o gozo de inúmeros direitos humanos, haveria, em razão da disseminada prática internacional de não aceitação da corrupção, da existência de inúmeros instrumentos internacionais registrando a preocupação da comunidade internacional com o fenômeno e da colocação em risco dos valores mais elevados da comunidade internacional, a possibilidade de serem tais atos de corrupção enquadrados como crimes internacionais. Ele entende que o modo mais efetivo de se combater a corrupção é elevando sua prática à esfera de crime de interesse universal, de acordo com as normas internacionais, registrando que já há suficiente prática estatal para reclamar a existência de norma consuetudinária universal proibindo a corrupção em todas sociedades, sendo que haveria já o direito fundamental a uma sociedade livre de corrupção, que poderia ser componente do direito à autodeterminação e desenvolvimento ou até mesmo como direito autônomo. Assevera que o direito a uma sociedade livre de corrupção é inerentemente um direito humano porque a vida, a dignidade e outros importantes valores humanos dependem desse direito. Nessa esteira, veio Kumar (2003) em trabalho que, além de explorar as interfaces entre direitos humanos e o problema da corrupção, prega a necessidade do estabelecimento, como direito fundamental positivado na Constituição indiana, de um direito fundamental de um serviço público livre de corrupção, o que geraria o empoderamento da cidadania com a colocação do grave problema no centro do debate político, potencialmente transformando o sistema de governança e fortalecendo a democracia.” (ANDRÉ PIMENTEL FILHO. (Uma) Teoria da Corrupção – Corrupção, Estado de Direito e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2015, p.110-111).
[6] “A Carta de 1988, ao evidenciar a importância da cidadania no controle dos atos da Administração, com a eleição dos valores imateriais do art. 37, da CF/1988 como tuteláveis judicialmente, coadjuvados por uma série de instrumentos processuais de defesa dos interesses transindividuais, criou um microssistema de tutela de interesses difusos referentes à probidade da administração pública, nele encartando-se a Ação Cautelar Inominada, Ação Popular, a Ação Civil Pública e o Mandado de Segurança Coletivo, como instrumentos concorrentes na defesa desses direitos eclipsados por cláusulas pétreas.” (STJ, AgRg no Ag 1249132/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 24/08/2010, DJe 09/09/2010.
[7] “A Lei da Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) objetiva punir os praticantes de atos dolosos ou de má-fé no trato da coisa pública, tipificando como de improbidade administrativa o enriquecimento ilícito (art. 9o.), o prejuízo ao erário (art. 10) e a violação a princípios da Administração Pública (art. 11). A responsabilização por conduta ímproba exige atos pessoais do Agente Público que se revelem ultra vires aos estatutos internos dos órgãos administrativos e que consubstanciem aguda ilegalidade ao conceito de probidade, conceituação essa não fechada, mas apenas obtida por aproximação a virtudes como ética, retidão, honestidade, zelo, decoro e boa-fé. A noção de improbidade é, portanto, a aversão a referidas virtudes, uma vez que a Administração Pública está ornada de princípios que norteiam a atividade vinculada da gestão da coisa pública, nomeadamente: legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Ao ofender esses princípios, isto é, conduzir-se para além dos postulados nucleares da Administração Pública, em ato que resulte em lesão aos cofres públicos e em enriquecimento ilícito, para si ou terceiros (evidentemente atos estranhos aos tão sublimes princípios administrativos), o praticante do ato comete improbidade administrativa. A Ação de Improbidade é o veículo de regresso ao maleficente administrador.” (STJ, AgInt no AREsp 1178445/RJ, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/11/2020, DJe 18/11/2020).
[8] “Um dos mais graves problemas da Lei 8.429/92 é permitir certas hipóteses de improbidade culposa. Ao debater o conceito jurídico de improbidade, vimos que é absolutamente incompatível no binômio ‘improbidade-desonestidade’ a ocorrência de qualquer modalidade culposa. Nunca se ouviu dizer que alguém seja desonesto por acidente, sem desejar sê-lo.” (SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito Administrativo do Medo. São Paulo: Thomson Reuters (RT). 1ª edição, 2020, p.177/178).
[9] “A conduta exigida do agente público não se limita à sua convicção pessoal sobre a licitude, abrangendo, também, a observância de um padrão mínimo esperado no âmbito da administração pública, tendo em vista o objetivo primordial de atender o interesse público. É dizer, do agente público exige-se grau de diligência superior ao do homem médio. Isso porque ele não pode dispor da coisa pública como bem lhe aprouver. Ao contrário, deve empregar na proteção da res publica zelo maior do que aquele com que trata dos seus interesses privados. Por essa razão, comportamentos que revelem uma atuação despreocupada e descompromissada do agente público não podem ser tolerados.” (AgInt no AREsp 1642313/SE, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/11/2020, DJe 18/11/2020).
[10] “É regra básica de qualquer ordenamento jurídico (calcado na isonomia e justiça social) que todo aquele que cause dano a outrem, ainda que de maneira não-intencional, deve ressarcir a vítima. Se é assim para os lícitos cíveis comuns, como muito mais razão há de ser no caso dos atos de corrupção que causem dano a um particular ou ao erário público, sendo que nesta última hipótese a reparação há de ser integral, pelo menos a priori.. Especificamente na ocorrência de danos ao erário público, deve-se destacar que o princípio da reparação integral do dano impõe plena responsabilidade patrimonial dos responsáveis e eventuais beneficiários do ato corrupto, incluindo, além do ressarcimento, eventual dano moral coletivo pelo abalo que os atos de corrupção causam na justa expectativa de um governo honesto. Trata-se de imposição constitucional consagrada pelos artigos 37, §§ 4º e 5º[10] c/c artigo 225, §3º[10] e que também consta como efeito da procedência da ação popular, da ação de improbidade administrativa, e da ação penal.” (PINHEIRO, Igor Pereira. Improbidade Administrativa no STF e STJ. Leme/SP: Mizuno. 1ªedição, 2021, p.100/101).
[11] Vide artigo 53, da Convenção de Mérida, in verbis: Indenização por danos e prejuízos: Cada Estado Parte adotará as medidas que sejam necessárias, em conformidade com os princípios de sua legislação interna, para garantir que as entidades ou pessoas prejudicadas como conseqüência de um ato de corrupção tenham direito a iniciar uma ação legal contra os responsáveis desses danos e prejuízos a fim de obter indenização.
Livro indicado:
Nova Lei de Improbidade Administrativa Anotada e Comparada
Autores: Igor Pereira Pinheiro, Henrique da Rosa Ziesemer
https://www.editoramizuno.com.br/nova-lei-de-improbidade-administrativa-anotada-e-comparada.html
Curso indicado:
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO NA NOVA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
Autores: Igor Pereira Pinheiro, Henrique da Rosa Ziesemer
O conteúdo do texto está impregnado de teses e interpretações típicas do Ministério Público. As modificações da LIA, corrigem um rastro de injustiças, ilegalidades e inconstitucionalidades e deve ser vista como uma “boa nova”.
fui condenado a 2 anos e um mês por improbidade administrativa, no artigo 90 da lei de licitações com a nova lei posso ser beneficiado 14230 alem do mais tenho 79 anos, se possível de uma resposta como devo proceder
fico-lhe grato