Por intermédio da Lei número 13.982 de 2020, o Brasil instituiu o benefício do “auxílio emergencial”, para assegurar uma renda mínima aos brasileiros em situação mais vulnerável durante a pandemia da COVID-19. Através dessa política pública, o Governo Federal previu o repasse de R$ 600,00 (seiscentos reais) aos trabalhadores informais e de baixa renda, microempreendedores individuais e contribuintes individuais do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O objetivo do auxílio foi mitigar os impactos econômicos causados pela Pandemia de COVID-19 no Brasil.[1]
Para o direito à percepção dos valores de auxílio emergencial o brasileiro deve cumprir cumulativamente os requisitos trazidos pela Lei número 13.982, de 2 de abril de 2020: 1. ser maior de 18 anos de idade; 2. não ter emprego formal ativo; 3. não ser titular de benefício previdenciário ou assistencial ou beneficiário do seguro-desemprego ou de programa de transferência de renda federal, ressalvado, nos termos dos §§ 1º e 2º, o Bolsa Família; 4. possuir renda familiar mensal per capita de até 1/2 (meio) salário-mínimo ou a renda familiar mensal total seja de até 3 (três) salários-mínimos; 5. no ano de 2018, não tenha recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70 (vinte e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove reais e setenta centavos); 6. exerça atividade na condição de: microempreendedor individual (MEI); contribuinte individual do Regime Geral de Previdência Social que contribua na forma do caput ou do inciso I do § 2º do art. 21 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991 ; ou trabalhador informal, seja empregado, autônomo ou desempregado, de qualquer natureza, inclusive o intermitente inativo, inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) até 20 de março de 2020, ou que, nos termos de autodeclaração, cumpra o requisito do inciso IV.[2]
A arrecadação do benefício assistencial temporário, sem o cumprimento das condições trazidas pelo artigo 2º da Lei 13.982 de 2020, configura verdadeira fraude, passível de incidência de cominações penais a depender do caso (estelionato, falsidade ideológica e inserção de documentos falsos em sistema de informação).
Interessante mencionar, nesse sentido, que há Projeto de Lei (PL 3186 de 2020) em tramitação na Câmara dos Deputados para aumentar em um terço as penas para os crimes de estelionato, falsidade ideológica e inserção de dados falsos em sistemas de informação, quando os delitos forem praticados visando ao recebimento indevido do auxílio emergencial de R$ 600.[3]
Conquanto Direito Penal e Direito do Trabalho possuam cada qual sua autonomia, não podemos nos esquecer que o Direito é único, agrupado em ramos de acordo com suas particularidades. Nos dizeres de Maurício Godinho Delgado: “O Direito em sua estrutura e dinâmica operacional, corresponde a um sistema, integrado por partes diferenciadas, mas que tem de se ajustar, lógica e concretamente. Na qualidade de sistema, não há no Direito antinomias inconciliáveis, que façam a ordem jurídica perder a organicidade, coerência e força normativa.”[4]
Nesse quadro, o desvio de conduta que sofre a incidência do Direito Penal (que tem como base o Princípio da Subsidiariedade) não poderia deixar de, igualmente, comportar as consequências oriundas do Direito do Trabalho, a fim de assegurar a manutenção do caráter sistemático e coerente do fenômeno jurídico.
Esta racionalização fez com que o Direito do Trabalho procurasse caracterizar as infrações viabilizadora da aplicação de punições no âmbito de emprego. O rol de infrações tipificadas pelo artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho é bastante amplo. Dentre elas o “mau procedimento”, situação caracterizada pela conduta culposa do empregado que atinja a moral do empregador, prejudicando o ambiente laborativo ou as obrigações contratuais do obreiro.
A arrecadação do benefício assistencial temporário, por pessoas com emprego formal ativo, viola expressamente o mandamento legal de proibição da concessão do auxílio emergencial àquele que tenha emprego formal ativo[5] e, por via de consequência, é apta ao enquadramento das infrações tipificadas no artigo 482 do diploma celetista.
O Banco Itaú, seguindo essa linha, demitiu trabalhadores que não atendiam aos critérios de elegibilidade para receber o benefício. De acordo com as regras do programa, pessoas com emprego formal não fazem parte do público-alvo. Em nota, o Banco Itaú se manifestou afirmando que tais condutas vão de encontro aos valores fundamentais da instituição, configurando, desvio de conduta:
“Ética é um valor fundamental, que deve ser cultivado não apenas nas decisões do banco, mas também dos seus colaboradores, que são orientados e treinados de forma recorrente sobre o tema. Desta forma, ao identificar que alguns dos seus profissionais solicitaram o auxílio emergencial disponibilizado pelo governo federal, prática que caracteriza desvio de conduta, o banco decidiu pelo desligamento desses colaboradores.”[6]
Dada a importância do auxílio emergencial, tornou-se consolidado na jurisprudência a impenhorabilidade do referido benefício:
PENHORA. AUXÍLIO EMERGENCIAL. A penhora de valores oriundos do auxílio emergencial, criado pela Lei n. 13.982/20, regulamentado pelo Decreto n. 10.316/20, encontra óbice na finalidade protetiva prevista no art. 833, IV, CPC, uma vez que o benefício tem natureza assistencial e alimentar. (TRT-2 00001018620145020027 SP, Relator: FRANCISCO FERREIRA JORGE NETO, 14ª Turma – Cadeira 1, Data de Publicação: 26/10/2020)
Conclui-se, portanto, que, num momento em que a pandemia volta a fazer mais de 1 mil vítimas por dia e o sistema de saúde de diversas capitais dá sinais de colapso, a desestruturação de fraudes contra o sistema é fundamental, seja para manutenção da reputação e da credibilidade do Estado, seja para assegurar direitos sociais básicos (leia-se sobrevivência) de parcela da população que, de fato, necessita do apoio governamental. Para tanto, a sincronia entre Poder Público e iniciativa privada, bem como entre as esferas do Direito é salutar.
[1] https://www.gov.br/cidadania/pt-br/servicos/auxilio-emergencial
[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13982.htm
[3] https://www.camara.leg.br/noticias/715537-projeto-aumenta-penas-para-crime-de-recebimento-indevido-do-auxilio-emergencial/#:~:text=O%20Projeto%20de%20Lei%203186,aux%C3%ADlio%20emergencial%20de%20R%24%20600.&text=O%20texto%20altera%20a%20Lei,20%2C%20que%20trata%20do%20aux%C3%ADlio.
[4] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18ª Edição. Editora LTr. 2019. Página 736.
[5] Art. 2º Durante o período de 3 (três) meses, a contar da publicação desta Lei, será concedido auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais) mensais ao trabalhador que cumpra cumulativamente os seguintes requisitos: (…) II – não tenha emprego formal ativo;
[6] https://www.poder360.com.br/economia/itau-demite-50-funcionarios-que-pediram-auxilio-emergencial/
Receberam no meu nome o auxílio e pra mim foi negado fiquei sabendo agora pelo imposto de renda que tenho que devolver 3 mil mas não recebi nada como proceder alguém recebeu por mim