O Fundo Triliardário e o Guardião Invisível: Quem Fiscalizará o Coração da Reforma Tributária?

Renaldo R. Junior1

A Reforma Tributária, promulgada pela Emenda Constitucional 132, representa a mais profunda e ambiciosa reestruturação do federalismo fiscal brasileiro em décadas. Nascida sob a bandeira da simplificação e da racionalidade econômica, ela promete desatar os nós de um dos sistemas tributários mais complexos do mundo. No epicentro desta transformação está a criação do Comitê Gestor do IBS, uma entidade destinada a centralizar a arrecadação, a regulamentação e a administração do novo Imposto sobre Bens e Serviços em nome de todos os 27 estados, do Distrito Federal e dos mais de 5.500 municípios. Este órgão será o coração operacional do novo sistema, por onde fluirá um volume de recursos que especialistas já apelidam, com razão, de “fundo triliardário”.

Contudo, por trás da promessa de eficiência, emerge um paradoxo fundamental e uma questão alarmante, indaga-se: ao simplificar a cobrança, estamos criando um centro de poder financeiro tão colossal e autônomo que ele pode escapar dos mecanismos tradicionais de controle da República? Em outras palavras, quem, de fato, controlará este novo e poderoso centro de poder? 

O desenho do Comitê Gestor lhe confere uma autonomia sem precedentes. Suas atribuições vão muito além da mera arrecadação; ele terá poder normativo para regulamentar a lei, realizar compensações e efetuar retenções diretamente na fonte. Ele não apenas administrará a principal receita tributária do país, mas também terá um orçamento próprio colossal. A legislação permite que o comitê retenha até 0,2% do montante total arrecadado com o IBS para financiar suas próprias operações. Em valores atuais, essa fatia representa uma verba anual superior a R$ 2 bilhões. Para colocar em perspectiva, este valor supera o orçamento do Tribunal de Contas da União (TCU), a mais alta corte de contas do país, e equivale ao orçamento de capitais brasileiras de médio porte.

O problema, no entanto, não reside apenas no tamanho do orçamento, mas na alarmante fragilidade do mecanismo de fiscalização proposto inicialmente no Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2024. A proposta original, de uma simplicidade perigosa, determinava que a prestação de contas do Comitê Gestor seria apreciada apenas pelo Tribunal de Contas do estado de origem do seu presidente.

Na prática, isso cria um vácuo de responsabilidade monumental e uma afronta direta ao pacto federativo. Se o presidente do comitê for, por exemplo, do Mato Grosso, os Tribunais de Contas de São Paulo, Minas Gerais, Ceará e de todos os outros 25 estados ficariam de fora da fiscalização direta. Seriam meros espectadores, enquanto a totalidade de suas receitas de consumo é gerenciada por uma entidade cujas contas eles não podem auditar. É uma falha que mina o princípio da soberania financeira dos estados e a própria noção de controle externo, abrindo portas para a politização da gestão e a ausência de uma prestação de contas efetiva a todos os entes que financiam e dependem daquela estrutura.

A solução para este impasse, defendida veementemente no debate por especialistas, é a aplicação de um princípio de responsabilidade compartilhada e fiscalização conjunta. A lógica é simples e já está prevista em outra parte da lei: para a aprovação do orçamento anual do Comitê Gestor, todos os poderes legislativos dos entes federativos (estados e municípios) têm o direito de se manifestar. Se a aprovação do plano de gastos é coletiva, por que a verificação de seu cumprimento seria singular?

A proposta mais sensata é que a prestação de contas do comitê seja submetida à análise e ao julgamento de todos os Tribunais de Contas dos estados e do Distrito Federal, possivelmente por meio de uma comissão conjunta ou de um sistema de auditoria rotativo. Este modelo não apenas fortalece o controle, multiplicando os olhares sobre a gestão, mas também respeita a autonomia e o interesse direto de cada ente federado sobre seus próprios recursos. A fiscalização deixaria de ser um ato isolado e vulnerável a pressões locais para se tornar um esforço coordenado, robusto e verdadeiramente republicano, refletindo a natureza cooperativa que a reforma almeja. Implementar tal sistema é reafirmar os princípios constitucionais da transparência, da moralidade e da eficiência na administração pública.

 O sucesso da Reforma Tributária não será medido apenas pela simplificação de alíquotas ou pelo fim da competição predatória entre os estados. Seu verdadeiro êxito dependerá da construção de um sistema transparente, confiável e democraticamente controlado, onde o conceito de “cidadania fiscal” seja pleno: o direito não apenas de pagar tributos, mas de saber exatamente como são geridos e fiscalizados.

Deixar o coração financeiro do país sob a guarda de um “guardião invisível” ou de um controle meramente protocolar é um risco que o Brasil não pode correr. A discussão em torno do PLP 108/2024 no Senado Federal é uma oportunidade crucial para que os Tribunais de Contas, o Congresso Nacional e a sociedade civil exijam um modelo de fiscalização à altura da importância do Comitê Gestor.

Sem transparência e um controle efetivo e compartilhado, corremos o risco de trocar um problema complexo e descentralizado por um poder centralizado, opaco e inalcançável, longe dos olhos do cidadão e dos órgãos que devem protegê-lo. A hora de garantir que a nova casa tributária do Brasil tenha paredes de vidro e múltiplos vigilantes é agora, antes que suas fundações sejam concluídas.


  1. Advogado. Mestre em Educação pela Universidade Tuiuti do Paraná. Especialista em Direito Público pela Faculdade LEAGALE. Professor Universitário na UNISEPE Educacional. Procurador Jurídico da Câmara Municipal de Ilha Comprida. Advogado Tributarista no Escritório Vieira Barbosa & Carneiro Advogados. Autor do livro “Reforma Tributária Comentada”, pela Editora Mizuno. ↩︎

Sugestão de Leitura:

Reforma Tributária – Lei Complementar nº 214/2025 Comentada

Renaldo R. Júnior

Análise prática da Reforma Tributária: IBS, CBS, Imposto Seletivo, EC 132/2023 e LC 214/2025. Riscos, novos tributos, transição fiscal e compliance empresarial.

COMPRAR

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Voltar ao topo