IMPACTO JURÍDICO DAS ENCHENTES NO RIO GRANDE DO SUL: Excludente de Responsabilidade sobre o Dever de Preservação de Documentos e Provas

Felippe Martins Brasiliense de Souza Curia

Resumo: As enchentes e inundações no Estado do Rio Grande do Sul, que levaram ao reconhecimento do estado de calamidade pública pelo Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, suscitaram questões legais significativas para os empregadores, incluindo a perda de documentos essenciais. Este artigo analisa a possibilidade de excluir a responsabilidade ou a pena de confissão para empregadores devido à perda de documentos provocada por eventos naturais, configurando-os como caso fortuito ou força maior. Utiliza-se de jurisprudência relevante e decisões judiciais de diversas Justiças para corroborar a análise. Realiza-se análise das normas jurídicas aplicáveis. Trabalha-se com a hipótese de excludente de responsabilidade quanto à preservação de documentos e provas por parte do empregador.

Palavras-chave: Enchente; Prova Documental; Confissão; Prova Testemunhal.

LEGAL IMPACT OF FLOODS IN RIO GRANDE DO SUL: Exclusion of Liability on the Duty to Preserve Documents and Evidence

Abstract: The floods in the state of Rio Grande do Sul, which led to the Ministry of Integration and Regional Development recognizing a state of public calamity, have raised significant legal issues for employers, including the loss of essential documents. This article analyzes the possibility of excluding liability or the penalty of confession for employers due to the loss of documents caused by natural events, configuring them as unforeseeable circumstances or force majeure. Relevant case law and court decisions from various courts are used to support the analysis. The applicable legal rules are analyzed. The hypothesis of an exclusion of liability for the preservation of documents and evidence on the part of the employer is analyzed.

Key-words: Flood; Documentary Evidence; Confession; Witness Evidence.

1 INTRODUÇÃO

O Estado do Rio Grande do Sul foi recentemente atingido por enchentes devastadoras, causando significativos impactos nas relações de trabalho e na economia local. Diante dessa situação de calamidade pública, uma série de medidas trabalhistas emergenciais foram implementadas por órgãos como o Ministério Público do Trabalho, o Ministério do Trabalho e Emprego, e a Resolução CODEFAT, visando mitigar alguns dos efeitos negativos que afetaram empregadores e empregados.

Foi publicada recomendação do Ministério Público do Trabalho (MPT) destacando a importância do teletrabalho, antecipação de férias, aproveitamento de feriados e a proteção contra assédio moral aos trabalhadores impactados pelas enchentes. Também foram publicadas portarias do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) suspendendo prazos processuais, permitindo a suspensão ou redução de recolhimentos do FGTS pelas empresas situadas nas áreas atingidas, enquanto uma Resolução do CODEFAT possibilitou a ampliação do alcance do seguro-desemprego e antecipação do Abono Salarial. Também foram autorizados saques do FGTS e estabelecidas novas diretrizes para o expediente forense e atividades judiciárias, como suspensão de prazos processuais e adaptação para atendimento remoto. E, por fim, a Medida Provisória 1230/2024, publicada em 07/06/2024, que consiste apenas no pagamento de duas parcelas de R$ 1.412,00, nos meses de julho e agosto de 2024, a trabalhadores que possuem vínculo formal de emprego (CLT), e estagiários de empresas que tenham aderido ao auxílio mediante cadastro do CNPJ.

A implementação dessas normas e portarias e Medida Provisória pode demonstrar a preocupação de alguns em preservar direitos trabalhistas, a segurança das relações de trabalho, diante das consequências promovidas pelas enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul. Porém, não dão conta da gama de problemas que enfrentam os empregados e empregadores, a provocar uma série de consequências a afetar as relações de trabalho.

Analisa-se, assim, a situação de enchentes, inundações, alagamentos terem provocado a perda ou deterioração de documentos indispensáveis para fins de prova em processos judiciais trabalhistas, verificando a hipótese de existir uma excludente de responsabilidade ou de pena de confissão, como o caso de tais eventos configurarem caso fortuito ou força maior, independente da vontade do empregador, gerando uma situação impossível quanto ao dever de guarda e zelo pela documentação da relação de trabalho e emprego. Como método, realiza-se a coleta de dados a partir de decisões judiciais das Justiças Estaduais e da Justiça do Trabalho, em âmbito nacional.

2 FORÇA MAIOR E CASO FORTUITO: IMPLICAÇÕES JURÍDICAS PARA EMPREGADORES

Seguindo a hipótese em comento, pesquisa-se sobre o que pode ser considerado caso fortuito ou força maior para determina-se a possiblidade de empregadores não poderem ser responsabilizados pela perda de documentos a fim de não sofrerem a pena de confissão em processos trabalhistas por deixar de apresentar provas documentais relativas ao contrato de trabalho, tais como cartão ponto físico, contracheques físicos, contratos de trabalho, termos de rescisão, dentre outros.

A partir de pesquisa de decisões judiciais, encontra-se uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça), definindo a força maior como causa excludente de responsabilidade civil, possuindo como característica marcante a sua inevitabilidade em se tratando de eventos caracterizados por acontecimentos naturais, tais como a inundação, o raio, o terremoto, o ciclone, o maremoto (RESP n. 1.217.701/TO, relator Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julg. Em 7/6/2016, DJe de 28/6/2016.).

Em se tratando de uma posição de um Tribunal Superior, tem-se que eventos da natureza, como as chuvas, inundações e enchentes como resultados daquela, podem ser considerados como caso fortuito e/ou força maior, os quais têm o condão de romper ou evitar a concepção de um nexo de causalidade entre os danos ocorridos e eventual conduta, se existente e minimamente existente, excluindo, por consequência, a responsabilidade civil. Trata-se do caso, por exemplo, de uma empresa que sofre com as chuvas e inundações de tal modo que veículos estacionados no seu interior são danificados, de tal modo que os proprietários não podem buscar na empresa a reparação do dano, por ser devido busca-la no Poder Público.

Isso porque a Administração Pública poderá ser responsabilizada pelos danos ocasionados por seus agentes, nos termos do art. 37, § 6º, da CRFB/88, diante da aplicação da regra de que a responsabilidade civil do Estado é de natureza objetiva (sem a necessidade de comprovação do dolo ou culpa). Portanto, a responsabilidade pela perda de documentos de empregados pela empresa, em caso de inundações sofridas, não pode ser imputada ao empregador, não podendo o mesmo sofrer penalidades no processo como a pena de confissão diante da falta de prova documental.

Esse entendimento se extrai de decisões judiciais proferidas por Tribunais de Justiça em que o Município é responsabilizado de forma objetiva em caso de alagamentos, enchentes, de modo que chuvas não eximem a responsabilidade objetiva da Administração Pública seja em razão do sistema deficiente de escoamento de águas, irregularidades na construção de tubulações (TJSP; AC 1010168-29.2019.8.26.0309; Ac. 17536022; Jundiaí; Sexta Câmara de Direito Público; Rel. Des. Alves Braga Junior; Julg. 31/01/2024; DJESP 06/02/2024; Pág. 2290), seja em razão de enchentes provocarem o transbordamento para o imóvel particular fazendo surgir, juridicamente, o dever de indenizar da concessionária de serviço público (TJMG; APCV 5000855-61.2017.8.13.0194; Segunda Câmara Cível; Relª Desª Maria Inês Souza; Julg. 31/01/2024; DJEMG 02/02/2024), seja por rompimento de poço de galeria pluvial (TJSP; AC 1005530-15.2020.8.26.0568; Ac. 17405081; São João da Boa Vista; Segunda Câmara de Direito Público; Rel. Des. Renato Delbianco; Julg. 01/12/2023; DJESP 13/12/2023; Pág. 2012).

Ou seja, a responsabilidade pelo dano sofrido pelo particular em razão de eventos naturais não pode ser a ele imputada, mas sim ao Poder Público. A situação de enchente, inclusive, não pode resultar em penalidades como revelia e confissão no caso de cidadão afetado a ponto de não receber a intimação pessoal para comparecer em audiência (TRT 1ª R.; ROT 0101443-45.2019.5.01.0302; Primeira Turma; Rel. Des. Marcel da Costa Roman Bispo; Julg. 25/04/2023; DEJT 09/05/2023). Logo, se a responsabilidade pelos danos provocados por enchentes, inundações e alagamentos decorrentes de chuvas cabe à Administração Pública, a mesma não pode ser imputada aos cidadãos e às empresas. Por isso, empregadores não podem ser penalizados pela ausência de documentos destruídos, deteriorados ou inutilizados em decorrência de eventos da natureza.

3 MEIO PROBATÓRIO PARA AFASTAR PENALIDADES

Em razão da perda ou deterioração de documentos em razão de eventos da natureza, como alagamentos, inundações e enchentes, a jurisprudência é no sentido de que é devido fazer a prova de tal situação mediante os seguintes meios probatórios:

  • Fazer boletim de ocorrência em razão da perda dos documentos por conta da enchente, discriminando todos os objetos que sofreram danos, avarias ou perda total;
  • Ter registro do local atingido pela enchente, mediante fotos, vídeos, notícias;
  • Obter certidão da Prefeitura, pois tem fé pública;
  • Decretos que noticiam o estado de calamidade pública.

E, em se tratando de dever de guarda de documentos para apresentar no processo sob pena de confissão, tal penalidade resta afastada podendo a prova ser eminentemente testemunhal sobre as matérias discutidas no processo.

Colaciona-se aresto que corrobora esse entendimento:

82023031 – PREVIDENCIÁRIO. TEMPO DE SERVIÇO. PROVA TESTEMUNHAL. EVENTO DE FORÇA MAIOR. ENCHENTE. POSSIBILIDADE. LEI Nº 8.213/1991, ART. 55, § 3º. PROVA DOCUMENTAL DO EVENTO. JUROS. HONORÁRIOS. PARCIAL PROVIMENTO. 1. A comprovação do tempo de serviço para os efeitos previdenciário, inclusive mediante justificação administrativa ou judicial, só produzirá efeito quando baseada em início de prova material, não sendo admitida prova exclusivamente testemunhal, salvo na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito (Lei nº 8.213/1991, art. 55, § 3º). 2. Caracteriza motivo de força maior ou caso fortuito a verificação de ocorrência notória, tais como incêndio, inundação ou desmoronamento, que tenha atingido a empresa na qual o segurado alegue ter trabalhado, devendo ser comprovada mediante registro da ocorrência policial feito em época própria ou apresentação de documentos contemporâneos dos fatos, e verificada a correlação entre a atividade da empresa e a profissão do segurado. (Decreto nº 3.048/99, art. 143, § 2º). 3. O autor trabalhou no escritório de contabilidade José Guilherme Filho na cidade de Caratinga/MG no período de 06/02/1966 a 08/08/1969. Não dispõe de início de prova material para comprovar a atividade, mas logrou demonstrar mediante prova documental a ocorrência de uma enchente neste município, no ano de 1973, que atingiu de forma grave o centro da cidade, onde se situava o escritório. Como prova do evento de força maior, apresentou notícias de jornais locais que relataram a enchente e os prejuízos e danos suportados pela população local (f. 26/37), sendo que um deles menciona que os escritórios atingidos pela catástrofe ainda estavam em fase de recomposição pois a documentação tinha sido destruída (d. 31). Certidão da Prefeitura Municipal de Caratinga f. 40 reporta a ocorrência de uma grande enchente em 24 de março de 1973, e declarada calamidade pública através da Lei Municipal 795/73. Declaração da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais afirma a inexistência de documentos na corporação a respeito da enchente, mas afirma possuir cópia do Projeto de Lei nº 795, em que o prefeito considerou em estado de calamidade pública a situação da época. 4. Certidão expedida pela prefeitura daquele município atesta a localização do escritório José Guilherme Filho entre 1965 e 1970, pelo pagamento de taxas de alvará de localização na praça Cesário Alvim, no centro da cidade (f. 38). Frise-se que a certidão, como ato administrativo do Poder Executivo de um dos entes da Federação no exercício de sua competência, possui presunção de veracidade e legitimidade, não podendo o INSS negar sua validade sem apresentar prova em contrário. E, ao contrário do que a autarquia sustenta, a certidão não informa o encerramento das atividades do escritório. 5. As testemunhas Sebastião Rodrigues Andrade, José Eustáquio Guido e Paulo Vicente Anselmo, ouvidos em audiência dia 29/07/2009, confirmaram a prova documental no sentido de terem presenciado a enchente de 1973, pois residiam na cidade à época, bem como relatam que conheciam o segurado na época em que este trabalhava no escritório de contabilidade de José Guilherme; e que o escritório era localizado na praça Cesário Alvim, um dos locais mais atingidos pelas águas (f. 213/215). 6. A CTPS não é o único documento legalmente apto a comprovar o tempo de serviço (Decreto nº 3.048/99, art. 62), motivo pelo qual, independentemente de sua falta, houve prejuízo comprovado ao segurado, justificando o uso da exceção legal que permite o uso de prova exclusivamente testemunhal no caso de força maior. […]. (TRF 1ª R.; Ap-RN 0033718-59.2006.4.01.3800; Primeira Câmara Regional Previdenciária de Juiz de Fora; Rel. Juiz Fed. Conv. José Alexandre Franco; DJF1 11/04/2017). Exclusividade Magister Net: Repositório autorizado On-Line do STF nº 41/2009, do STJ nº 67/2008 e do TST nº 35/2009.

Logo, a prova, em casos de caso fortuito ou força maior, pode ser testemunhal, inclusive sobre documentos, diante da impossibilidade de se apresentar prova documental desde que devidamente comprovada a causa para tanto.

4 RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO E FACTUM PRINCIPIS

Em se tratando de eventos naturais, a pessoa física, ou jurídica, não pode ser responsabilizada pelos danos advindos, nem sofrer penalidades em decorrência dos mesmos, pois a responsabilidade em tais situações é do Poder Público sendo a responsabilidade objetiva, por independer de prova.

Inclusive, o art. 486 da CLT prevê que “no caso de paralisação, temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável”.

Esse dispositivo consagra o fato príncipe (factum principis), por ser dever do Poder Público resguardar o interesse maior da população, agir no interesse maior da população, sendo, por isso, responsabilizado em casos omissivos ou comissivos (omissão ou ação), que promovam danos aos cidadãos, ainda que o fato tenha como origem eventos naturais.

Inclusive, se o evento da natureza for responsável pela rescisão de contratos de trabalho, o custo deve ser suportado pelo Poder Público, conforme art. 486 da CLT, sendo por este pagas as verbas rescisórias tais como aviso prévio indenizado, 13º proporcional, férias proporcionais, FGTS, etc.

Assim, os primeiros passos para a empresa se precaver de quaisquer responsabilidades e penalidades é promover:

  • O registro de boletim de ocorrência em razão da perda dos documentos por conta da enchente, discriminando todos os objetos que sofreram danos, avarias ou perda total;
  • O registro do local atingido pela enchente, mediante fotos, vídeos, notícias;
  • Junto à Prefeitura, uma certidão noticiando os fatos constantes no boletim de ocorrência e notícias; e
  • Ter consigo os decretos que noticiam ou noticiaram o estado de calamidade pública do município em que a empresa se encontra situada.

Logo, a responsabilidade por danos decorrentes de eventos naturais deve recair sobre o Poder Público, conforme previsto no art. 486 da CLT. Empresas devem adotar medidas preventivas para documentar perdas e, se necessário, buscar reparação civil frente à Administração Pública.

5 CONCLUSÃO

Os eventos naturais, como as enchentes e inundações que recentemente atingiram o Estado do Rio Grande do Sul, trazem à tona importantes questões jurídicas relativas à responsabilidade civil dos empregadores pela perda de documentos essenciais. Ao longo deste artigo, analisamos o enquadramento de tais eventos como caso fortuito ou força maior e suas implicações legais, especialmente no contexto trabalhista.

Verificou-se que, conforme jurisprudência de órgãos como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e outros Tribunais de Justiça estaduais, eventos naturais extremos podem ser considerados excludentes de responsabilidade, uma vez que se encaixam nos parâmetros de inevitabilidade e imprevisibilidade que caracterizam casos de força maior. A responsabilidade civil nessas situações é frequentemente atribuída à Administração Pública, fundamentada na responsabilidade objetiva do ente público em eventos inevitáveis que afetam a coletividade.

A produção de provas alternativas torna-se crucial para os empregadores que desejam afastar penalidades como a confissão ficta em processos trabalhistas decorrentes da perda de documentos. Meios como boletins de ocorrência, registros fotográficos, certidões expedidas por autoridades locais e cobertura jornalística sobre o evento são ferramentas valiosas na comprovação do ocorrido e na defesa dos direitos empresariais.

Em última análise, conclui-se que a responsabilidade pelos danos materiais e pela perda de documentos devido a eventos naturais deve recair sobre o Poder Público, conforme disposto no art. 486 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ao mesmo tempo, é essencial que as empresas adotem medidas preventivas robustas e desenvolvam estratégias eficazes de documentação para minimizar os riscos associados a tais eventos. Por fim, em situações adversas comprovadas, as empresas têm o direito de buscar reparação civil frente à Administração Pública para garantir que não sejam penalizadas injustamente por circunstâncias que escapam ao seu controle.

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