Arthur Mendes Lobo
Pós-Doutorando em Direito pela Universidad Carlos III de Madri. Doutor em Direito pela PUC/SP. Advogado e Sócio-Fundador do Escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço e Lobo Advogados.
Ricardo Alegransi
advogado e sócio da FGo Legal, com atuação focada em questões fiscais e regulatórias. É pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e possui experiência na assessoria a empresas e entidades setoriais na interlocução com o Congresso Nacional durante a tramitação da reforma tributária.
1. Introdução
A tributação de dividendos no Brasil tem sido objeto de intensos debates acadêmicos e legislativos. Desde a promulgação da Lei nº 9.249/1995, que isentou os lucros e dividendos distribuídos da incidência do Imposto de Renda, diversas propostas têm buscado reverter essa isenção, visando maior equidade fiscal.
Passados quase trinta anos da imposição isentiva, inúmeras foram as tentativas de retomada da tributação dos lucros e dividendos, porém nenhuma ato ou norma efetivamente cumpriram esta promessa.
Um dos principais argumentos em defesa da retomada da tributação sobre lucros e dividendos é a alegação de que o Brasil figura como uma exceção no cenário internacional, sendo um dos poucos países que isenta totalmente a distribuição de lucros das pessoas jurídicas aos sócios e acionistas.
No entanto, essa comparação frequentemente desconsidera as especificidades estruturais do sistema tributário brasileiro, notadamente seu modelo de arrecadação centrado no consumo e não na renda. Entre os países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a maioria adota a tributação dos dividendos, mas o faz dentro de um arranjo que considera o nível total de tributação corporativa e oferece mecanismos de integração parcial entre pessoa jurídica e física, a fim de evitar a dupla incidência plena sobre a mesma base econômica.
É necessário reconhecer que o Brasil possui uma estrutura tributária consideravelmente mais regressiva do que a média da OCDE. Dados da própria organização indicam que, enquanto os países da OCDE arrecadam em média 32,3% de sua carga tributária total sobre o consumo (valor de 2022), no Brasil esse percentual é significativamente superior, alcançando cerca de 49% a 52%, conforme dados da Receita Federal e estudos da Secretaria da Reforma Tributária.
Essa diferença demonstra que, ao contrário das economias desenvolvidas, a tributação no Brasil recai de forma desproporcional sobre o consumo de bens e serviços, afetando mais intensamente os contribuintes de menor renda.
Por outro lado, no que tange à tributação sobre a renda, os países da OCDE alcançam uma média de 41,9% de carga combinada sobre os lucros corporativos distribuídos aos acionistas, considerando tanto o imposto corporativo como a tributação na pessoa física sobre os dividendos.
Já no Brasil, a carga efetiva sobre o lucro é concentrada exclusivamente no nível da pessoa jurídica, com uma alíquota combinada de 34% (25% de IRPJ + 9% de CSLL), sem incidência adicional sobre os dividendos pagos.
Tal estrutura foi concebida para evitar a bitributação e estimular o reinvestimento do capital nas empresas, o que se perde caso a tributação sobre dividendos seja reintroduzida sem uma redução equivalente na tributação corporativa.
De fato, há uma discrepância entre o padrão internacional com a nossa realidade fiscal. Apesar de termos a reforma tributária sobre o consumo em avanço no Congresso Nacional e com previsão de início do período de transição a partir de janeiro de 2026 com previsão de conclusão apenas em 2032.
O Brasil possui uma característica em que poucos países possuem, que é a pejotização por parte das empresas, modelo comumente utilizado e que ganhou maior relevância após a reforma trabalhista realizada em 2017.
2. Brasil na OCDE
O pedido formal de adesão do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) foi protocolado em 2017, durante o governo de Michel Temer.
Essa iniciativa visava consolidar a integração do país às principais economias globais, buscando maior previsibilidade institucional, atração de investimentos estrangeiros e aprimoramento das políticas públicas por meio da adoção de padrões internacionais de governança e transparência.
O processo de aproximação com a OCDE, no entanto, remonta à década de 1990, quando o Brasil passou a participar de diversos comitês da organização e, em 1994, integrou o Centro de Desenvolvimento da OCDE.
A adesão à OCDE requer que o país candidato alinhe suas legislações, políticas e práticas a uma série de normas e recomendações estabelecidas pela organização. Para o Brasil, isso implica em ajustes significativos em áreas como governança regulatória, combate à corrupção, transparência fiscal, proteção ambiental e políticas de concorrência.
Destaca-se, por exemplo, a necessidade de reformar as regras de preços de transferência para adequá-las aos padrões da OCDE, conforme estabelecido na Medida Provisória nº 1.152, de 28 de dezembro de 2022.
Além disso, o Brasil tem buscado aprimorar sua estrutura regulatória por meio da implementação de políticas de boas práticas regulatórias, como a Análise de Impacto Regulatório (AIR), e da revisão e consolidação de atos normativos, conforme previsto no Decreto nº 10.139/2019. Essas medidas visam aumentar a eficiência e a transparência na elaboração de normas, alinhando o país às exigências da OCDE.
O último país latino-americano a se tornar membro da OCDE foi a Costa Rica, que oficializou sua adesão em 25 de maio de 2021.
O processo de ingresso da Costa Rica envolveu uma série de reformas estruturais, incluindo a modernização do sistema tributário, fortalecimento das políticas anticorrupção, aprimoramento da governança corporativa e implementação de políticas ambientais sustentáveis.
Essas medidas foram fundamentais para alinhar o país aos padrões exigidos pela OCDE e demonstram o compromisso da Costa Rica com a melhoria contínua de suas políticas públicas.
A experiência da Costa Rica serve como referência para o Brasil, evidenciando a importância de um compromisso firme com reformas estruturais e a adoção de práticas internacionais de excelência.
A adesão à OCDE representa, para o Brasil, uma oportunidade de consolidar sua posição no cenário internacional, promover o desenvolvimento sustentável e aprimorar a qualidade das políticas públicas em benefício da sociedade.
A partir deste cenário e conceitos, passamos a explorar os motivos e as consequências do Brasil (ainda) não tributar os dividendos, bem como os principais Projetos de Lei que avançaram no Congresso Nacional.
3. Tributação sobre os dividendos: histórico da Isenção de Dividendos
A tributação de lucros e dividendos no Brasil remonta ao início do século XX. Com a Lei nº 4.625, de 1922, os rendimentos passaram a ser tributados por meio de cédulas específicas. Esse modelo perdurou até a década de 1980, quando foram implementadas reformas que culminaram na unificação das bases de cálculo do Imposto de Renda.
A promulgação da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, marcou um ponto de inflexão na política tributária brasileira ao instituir a isenção do Imposto de Renda sobre lucros e dividendos distribuídos por pessoas jurídicas a partir de janeiro de 1996.
Essa medida tinha como objetivo evitar a bitributação, uma vez que os lucros já eram tributados no âmbito da pessoa jurídica.
A implementação do Plano Real em 1994 foi um marco na estabilização econômica do Brasil, pondo fim a décadas de hiperinflação. O plano envolveu a criação de uma nova moeda, o real, e a adoção de políticas fiscais e monetárias rigorosas para controlar a inflação.
A estabilidade econômica proporcionada pelo Plano Real criou um ambiente propício para reformas estruturais, incluindo a abertura do mercado e a modernização do Estado.
Nesse contexto de reformas, o Brasil iniciou um processo de abertura comercial e financeira, reduzindo barreiras tarifárias e incentivando a entrada de investimentos estrangeiros.
A abertura do mercado visava aumentar a competitividade da economia brasileira e integrá-la ao mercado global. Além disso, o país passou a adotar políticas de desregulamentação e privatização de empresas estatais, buscando aumentar a eficiência e reduzir o papel do Estado na economia.
Paralelamente, o governo brasileiro implementou a criação de agências reguladoras independentes para supervisionar setores estratégicos da economia, como energia, telecomunicações e saúde.
Essas agências foram estabelecidas com o objetivo de garantir a qualidade dos serviços, promover a concorrência e proteger os interesses dos consumidores. A estruturação dessas entidades representou uma mudança significativa no papel do Estado, que passou de provedor direto de serviços para regulador e fiscalizador.
A combinação dessas medidas — isenção de dividendos, estabilização econômica, abertura de mercado e criação de agências reguladoras — integrou uma estratégia mais ampla de modernização do Estado brasileiro nos anos 1990.
Essas ações visavam criar um ambiente econômico mais estável, competitivo e eficiente, alinhando o Brasil às práticas internacionais e promovendo o desenvolvimento sustentável.
4. Tentativas de Retorno da Tributação
Desde a promulgação da Lei nº 9.249/1995, diversas propostas legislativas buscaram reintroduzir a tributação sobre lucros e dividendos. Entre 2007 e 2018, foram apresentados 28 projetos de lei com esse objetivo, número que ultrapassou 40 nos dois anos seguintes.
As principais motivações para essas propostas incluem:
- Equidade fiscal: corrigir a regressividade do sistema tributário.
- Aumento da arrecadação: ampliar as receitas públicas sem elevar a carga tributária sobre o consumo.
- Alinhamento internacional: adequar o Brasil às práticas tributárias dos países da OCDE.
Apesar das tentativas, nenhuma das propostas foi aprovada até o momento, em parte devido à resistência de setores empresariais e à complexidade da reforma tributária.
5. Principais Projetos de Lei sobre o Tema
5.1 Projeto de Lei nº 2.337/2021
Apresentado pelo Poder Executivo, o PL nº 2.337/2021 propõe a tributação de lucros e dividendos distribuídos a pessoas físicas, com alíquota de 20%, isentando os valores recebidos por micro e pequenas empresas optantes pelo Simples Nacional.
5.2 Projeto de Lei nº 307/2021
De autoria do deputado José Nelto (Pode-GO), o PL nº 307/2021 estabelece a cobrança de Imposto de Renda, com alíquota de 10%, sobre lucros e dividendos distribuídos por empresas a pessoas físicas ou jurídicas, excetuando as optantes do Simples Nacional .Portal da Câmara dos Deputados
5.3 Projeto de Lei Complementar nº 1.087/2025
Recentemente, o governo federal apresentou o PLP nº 1.087/2025, que propõe a tributação de dividendos com alíquota de 10% para rendimentos mensais superiores a R$ 50 mil, além de estabelecer um imposto mínimo para pessoas físicas de alta renda.
6. Da análise do Fundo Monetário Nacional (FMI) sobre o tema
O artigo “Fiscal Financing and Investment Irreversibility: The Role of Dividend Taxation”, publicado pelo FMI analisou os efetiso macroeconômicos, sobre os preços de ativos e sobre a dívida pública de políticas fiscais baseadas no aumento do imposto sobre dividendos, com especial atenção aos impactos da irreversibilidade parcial dos investimento.
A pesquisa do FMI demonstra que, mesmo impostos que representam uma pequena fração da arrecadação total podem desempenhar papel estratégico na estabilização fiscal, sobretudo quando aplicados de forma contracíclica e vinculados a regras fiscais de correção da trajetória da dívida.
O Brasil enfrenta um cenário de dívida pública elevada, com rigidez orçamentária decorrente de gastos obrigatórios e uma base tributária altamente concentrada no consumo.
Nesse contexto, a reintrodução da tributação de dividendos — conforme vem sendo proposta em sucessivos projetos legislativos — pode ser uma alternativa viável à elevação de tributos sobre produção ou renda corporativa.
À luz do modelo proposto por Ghilardi e Zilberman, a tributação sobre dividendos teria o potencial de gerar menor distorção alocativa de curto prazo e contribuir para uma recuperação mais robusta do investimento no médio prazo, desde que desenhada com cautela para minimizar impactos sobre preços de ativos e expectativas de retorno dos investidores.
Ademais, o estudo reforça que a eficiência da tributação sobre dividendos depende da existência de fricções ao investimento, o que é especialmente relevante em países emergentes como o Brasil, onde o custo de capital é elevado e as empresas enfrentam maior dificuldade para ajustar sua estrutura de capital frente a choques macroeconômicos.
A adoção de mecanismos de tributação sobre dividendos, com regras de progressividade e coordenação com a tributação da renda pessoal, pode contribuir para o equilíbrio fiscal e a justiça tributária sem comprometer de forma significativa a atividade produtiva.
Diante da necessidade de alinhamento com os padrões internacionais, inclusive no processo de adesão à OCDE, o Brasil encontra no modelo analisado uma justificativa técnica para revisar sua política de isenção de dividendos, com base em critérios de sustentabilidade, eficiência e equidade.
7. Dividendos e a retomada dos holofotes para a Distribuição Disfarçada de Lucros (DDL)
Há uma potencial retomada pelo quase extinto instituto tributário chamado de Distribuição Disfarçada de Lucros (DDL) A Distribuição Disfarçada de Lucros (DDL) é uma figura jurídica prevista no ordenamento tributário brasileiro para identificar situações em que pessoas jurídicas realizam operações com seus sócios, acionistas ou partes relacionadas de modo a transferir-lhes, de forma indireta, vantagens econômicas equivalentes à distribuição de lucros, porém sem o devido recolhimento do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF).
Trata-se de um mecanismo de proteção à base tributária, utilizado pela administração fiscal para evitar que lucros, em vez de distribuídos sob a forma de dividendos — em regra isentos —, sejam repassados por vias simuladas, como empréstimos sem remuneração, pagamentos por serviços inexistentes, ou alienações de ativos a preços notoriamente inferiores aos de mercado.
A base legal da DDL encontra-se principalmente no art. 60 da Instrução Normativa SRF nº 1.700/2017 (que consolida regras anteriores como a IN SRF nº 243/2002) e no art. 466 do Regulamento do Imposto de Renda (RIR/2018), aprovado pelo Decreto nº 9.580/2018, que reproduz o conteúdo do art. 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001.
Estes dispositivos listam hipóteses específicas em que a administração tributária poderá presumir a existência de DDL, tais como: empréstimos a sócios sem cláusula de remuneração; pagamento de remuneração por serviços fictícios; aquisição ou alienação de bens a preços não compatíveis com os de mercado; e qualquer outra operação que represente vantagem econômica não usual ou indevida em favor dos sócios.
No plano jurisprudencial e administrativo, o tema da DDL é recorrente no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), principalmente em processos que envolvem a requalificação de despesas dedutíveis, ajustes de preços de transferência e autuações por omissão de receitas.
A jurisprudência oscila entre uma aplicação objetiva das hipóteses legais presumidas e uma análise de fundo econômico das operações — especialmente quando há documentação formal que sugere regularidade.
Por exemplo, operações entre partes relacionadas com preços divergentes do mercado, ainda que formalmente justificadas, têm sido frequentemente desconsideradas quando o fisco demonstra que resultaram em benefícios diretos aos sócios ou controladores sem a devida tributação.
Tribunais superiores, por sua vez, têm reforçado o entendimento de que a forma do negócio não pode prevalecer sobre a sua substância, reconhecendo a legitimidade da atuação da Receita Federal em desconsiderar negócios simulados ou com propósito essencialmente tributário (princípio da realidade econômica).
Nesse novo contexto, o risco de requalificação de operações sob a ótica da DDL se amplifica, pois o contribuinte poderá buscar alternativas para mitigar o impacto fiscal da nova carga tributária sobre dividendos.
Essa expectativa reforça o papel da Receita Federal do Brasil na identificação de atos societários, contratuais ou contábeis que ocultem distribuições disfarçadas de lucros, utilizando-se de mecanismos jurídicos como a desconsideração de atos simulados (art. 116, parágrafo único, do CTN), a aplicação das hipóteses presumidas previstas no art. 466 do RIR/2018, bem como o uso de métodos indiretos de apuração do lucro real e arbitramento da base tributável (arts. 831 a 853 do RIR/2018).
A atuação fiscal fundamentada na DDL deverá considerar, ainda, a estrutura de governança corporativa das empresas, os contratos firmados com partes relacionadas e a documentação contábil de suporte às operações.
Instrumentos como acordos de empréstimo, contratos de prestação de serviços, arrendamentos, cessões de uso e transferências de ativos serão examinados sob a ótica da razoabilidade econômica, do valor de mercado e da efetiva contraprestação.
Em linha com as orientações da OCDE e a jurisprudência dos tribunais superiores, a fiscalização tende a aplicar o princípio da primazia da substância sobre a forma, desconsiderando o negócio jurídico sempre que evidenciado o desvio de finalidade ou o propósito exclusivamente fiscal.
A relevância da DDL tende a se intensificar com a possível retomada da tributação sobre os dividendos no Brasil, conforme proposto em projetos de reforma tributária.
Isso porque, em um cenário de tributação na fonte sobre lucros distribuídos, pode haver maior incentivo para buscar formas alternativas de transferir valores aos sócios, o que, por sua vez, ampliaria o uso do instituto da DDL como instrumento de combate à elisão indevida.
Nesse sentido, é esperado que a Receita Federal reforce a fiscalização e os critérios objetivos para presumir a existência de DDL, tornando ainda mais relevante a governança contábil, a transparência na documentação societária e a adequação das transações com partes relacionadas às práticas de mercado.
8. Considerações Finais
A discussão sobre a retomada da tributação sobre os dividendos no Brasil exige reflexão técnica profunda e comprometida com os princípios constitucionais que regem o sistema tributário nacional, em especial a não cumulatividade, a capacidade contributiva e a vedação à bitributação.
Ao contrário do que muitas vezes é defendido em discursos simplificados, a atual isenção dos dividendos, instituída pela Lei nº 9.249/1995, não representa um privilégio fiscal, mas uma medida que visou evitar a dupla tributação da mesma base econômica – a renda empresarial, já onerada integralmente no nível da pessoa jurídica via IRPJ e CSLL.
Não se pode perder de vista que a tributação sobre os dividendos, se mal desenhada, tem o potencial de introduzir desequilíbrios sistêmicos, com impacto negativo sobre o ambiente de negócios, a atratividade de investimentos e a formalização da economia. A ausência de mecanismos de integração entre a tributação corporativa e a pessoa física, como ocorre, por exemplo, em diversos países da OCDE por meio de sistemas de imputação (imputation) ou créditos fiscais, transforma a reintrodução da tributação dos dividendos em verdadeira duplicidade de incidência, com forte potencial confiscatório.
Essa problemática se agrava quando se constata que, no modelo brasileiro, a base tributável na pessoa jurídica já é alargada por uma série de adições fiscais e presunções legais que se distanciam do lucro contábil. Além disso, a sistemática de apuração do lucro real impõe complexidade operacional e elevado grau de litigiosidade, de modo que a superposição de um tributo adicional na etapa de distribuição, sem qualquer modulação compensatória, viola o princípio da razoabilidade tributária e desestimula o reinvestimento. O resultado pode ser o encarecimento do capital próprio, o incentivo à alavancagem artificial e a corrosão da competitividade das empresas brasileiras no mercado global.
Nessa linha, uma eventual reforma deve ser acompanhada de uma reengenharia do sistema de tributação da renda, que considere simultaneamente a redução da carga no nível empresarial, a adoção de regimes simplificados para pequenos empreendedores e a preservação da neutralidade fiscal. Tributar dividendos não é, por si só, um erro. O erro está em fazê-lo de maneira desarticulada, ignorando os pilares estruturantes do sistema e os efeitos colaterais que essa escolha pode produzir. O desafio, portanto, não é apenas jurídico, mas essencialmente político e técnico: desenhar um modelo que seja sustentável, equitativo e funcional, sem comprometer os já frágeis fundamentos da segurança jurídica e da confiança no ambiente regulatório.
Sob essa perspectiva, a simples reintrodução do imposto sobre lucros distribuídos, sem uma redução equivalente na carga tributária da pessoa jurídica, pode configurar uma bitributação disfarçada, que viola o princípio da neutralidade e compromete a coerência do sistema.
Além disso, a experiência comparada demonstra que a tributação excessiva do lucro corporativo combinado com a distribuição pode gerar incentivos à elisão fiscal, agravando a complexidade do sistema e estimulando a criação de estruturas artificiais.
Nesse contexto, destaca-se o risco de ampliação do uso da Distribuição Disfarçada de Lucros (DDL) como resposta dos contribuintes para evitar o aumento da carga tributária, gerando insegurança jurídica e litigiosidade no contencioso tributário.
Outro impacto relevante e muitas vezes negligenciado nos debates legislativos é o efeito da tributação de dividendos sobre a chamada “pejotização”. Milhares de profissionais liberais e trabalhadores qualificados atuam como pessoas jurídicas por razões de sobrevivência econômica ou para viabilizar sua inserção no mercado de trabalho diante da rigidez das normas trabalhistas e dos altos encargos sobre a folha.
A imposição de uma nova carga tributária sobre os dividendos dessas pessoas jurídicas – muitas vezes compostas por um único profissional – representa uma penalização injusta a esse modelo de subsistência, com o risco de informalização ou evasão como respostas comportamentais inevitáveis.
Diante disso, a proposta de tributação de dividendos não deve ser tratada como medida isolada ou meramente arrecadatória, mas sim como parte de uma reforma estrutural coerente, que respeite a lógica da tributação da renda e os limites constitucionais de não confisco, proporcionalidade e capacidade contributiva.
Retomar a tributação sobre os dividendos sem reestruturar adequadamente as alíquotas dessas contribuições nos leva de volta ao mesmo impasse enfrentado em 1995, quando se reconheceu a necessidade de uma sistemática mais racional e eficiente para estimular o investimento produtivo.
Ignorar esses fundamentos pode comprometer os objetivos de justiça fiscal e estabilidade econômica, levando a retrocessos institucionais em vez de avanços no sistema tributário brasileiro.
Referências
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Sugestão de Leitura:

Reforma Tributária – Lei Complementar nº 214/2025 Comentada
Renaldo R. Júnior
Análise prática da Reforma Tributária: IBS, CBS, Imposto Seletivo, EC 132/2023 e LC 214/2025. Riscos, novos tributos, transição fiscal e compliance empresarial.
