Mais que Tributos: A Reforma que Redesenha o Pacto Federativo Brasileiro

Renaldo R. Junior1

Embora discutida sob a ótica da simplificação de impostos e da eficiência econômica, a consequência mais duradoura e estrutural da Reforma Tributária não estará nas guias de pagamento, mas no mapa do poder no Brasil. A mudança vai muito além da criação do IBS e da CBS; ela representa um redesenho fundamental do pacto federativo, alterando drasticamente o equilíbrio de poder, a autonomia e as responsabilidades entre a União, os estados e os municípios. Estamos testemunhando não apenas uma reforma fiscal, mas a refundação do federalismo brasileiro para o século XXI.

 Por décadas, o federalismo fiscal brasileiro foi marcado por uma competição acirrada e, por vezes, predatória. O ICMS (estadual) e o ISS (municipal) não eram apenas fontes de receita, mas as principais ferramentas de política de desenvolvimento econômico dos entes subnacionais. Por meio de benefícios, isenções e alíquotas diferenciadas, governadores e prefeitos travavam uma “guerra fiscal” para atrair empresas e investimentos. Essa disputa se manifestava de várias formas: da “guerra dos portos”, onde estados ofereciam alíquotas de importação irrisórias, à concessão de terrenos e créditos presumidos para a instalação de fábricas, muitas vezes com um custo altíssimo para os cofres públicos e gerando distorções em todo o país. O resultado foi um ciclo vicioso de renúncia fiscal, insegurança jurídica e uma erosão da base tributária nacional.

A reforma põe um fim abrupto a essa era. Ao unificar a legislação e centralizar a arrecadação e a administração do IBS no Comitê Gestor, ela retira dos estados e municípios a sua principal ferramenta de atração econômica. A expressão usada no debate, de que os entes “perderam a chave do cofre”, é precisa e profunda. Eles não têm mais controle direto sobre a definição das regras de seus impostos mais importantes. Essa perda de autonomia na política tributária é o preço pago pela busca de um ambiente de negócios nacionalmente unificado e racional. Perde-se não apenas um instrumento de política pública, mas também um poderoso capital político que governadores e prefeitos utilizavam em negociações com o setor privado e com o próprio eleitorado.

A nova arquitetura federativa nasce com uma tensão fundamental, expressa nas visões distintas dos especialistas. Por um lado, há a perspectiva de que estamos evoluindo para um federalismo cooperativo, onde decisões são tomadas de forma conjunta e coordenada no Comitê Gestor, eliminando a concorrência ruinosa e promovendo o interesse nacional. A ideia é que, ao sentarem-se à mesma mesa, os entes encontrarão soluções que beneficiem o todo, em vez de apenas as partes.

Por outro lado, emerge o alerta contundente de um risco de federalismo hegemônico. A preocupação, levantada pela professora Misabel Derzi, reside na estrutura de votação do Comitê Gestor. O modelo proposto dá um peso decisivo aos estados mais populosos e, consequentemente, mais ricos do Sul e Sudeste. As decisões mais importantes exigirão não apenas a maioria dos representantes, mas também que estes representem mais de 60% da população do país. Na prática, isso significa que uma aliança de poucas regiões pode aprovar regulamentos e tomar decisões que beneficiem seus interesses, mesmo com a oposição unânime de todos os estados do Norte e Nordeste. O que se desenha como cooperação pode, na prática, se tornar uma dominação da maioria populacional, aprofundando desigualdades em vez de mitigá-las e transformando o “interesse nacional” em sinônimo do interesse das regiões mais desenvolvidas.

A autonomia de estados e municípios, no entanto, não desaparece por completo; ela se transforma radicalmente. Se antes o poder estava na capacidade de legislar sobre tributos, agora ele residirá na capacidade de executar bons projetos e criar um ambiente de negócios genuinamente competitivo. A nova fronteira da autonomia estará na gestão dos recursos recebidos, especialmente os provenientes de fundos como o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR).

A competição por investimentos não será mais travada com a oferta de isenções fiscais, mas com a criação de valor real. Um estado que desejar atrair uma indústria de alta tecnologia não poderá mais simplesmente oferecer um desconto no imposto. Terá que provar que possui uma infraestrutura logística eficiente, um ecossistema de inovação com universidades e centros de pesquisa de ponta, capital humano qualificado e um ambiente regulatório estável e ágil. O desafio para os governos locais será desenvolver uma nova competência administrativa, focada no planejamento estratégico de longo prazo e na execução eficiente de projetos que gerem desenvolvimento real e sustentável. A autonomia, portanto, migra da caneta que concede o benefício para a máquina que constrói o futuro.

O Brasil aposta em um novo modelo de federalismo, mais centralizado na regra e, teoricamente, mais cooperativo na gestão. O sucesso dessa aposta dependerá criticamente da governança do Comitê Gestor e da capacidade dos estados e municípios de se reinventarem. Essa transição exigirá uma mudança de mentalidade política e administrativa, provando que são capazes de promover o desenvolvimento não mais pela renúncia de receitas, mas pela excelência em sua aplicação. O risco é que, sem o devido suporte, as regiões menos desenvolvidas fiquem para trás nessa nova e mais sofisticada forma de competição, tornando o equilíbrio federativo um desafio ainda maior.


  1. Advogado. Mestre em Educação pela Universidade Tuiuti do Paraná. Especialista em Direito Público pela Faculdade LEAGALE. Professor Universitário na UNISEPE Educacional. Procurador Jurídico da Câmara Municipal de Ilha Comprida. Advogado Tributarista no Escritório Vieira Barbosa & Carneiro Advogados. Autor do livro “Reforma Tributária Comentada”, pela Editora Mizuno. ↩︎

Dica de Livro:

Reforma Tributária – Lei Complementar nº 214/2025 Comentada

Renaldo R. Júnior

Análise prática da Reforma Tributária: IBS, CBS, Imposto Seletivo, EC 132/2023 e LC 214/2025. Riscos, novos tributos, transição fiscal e compliance empresarial.

COMPRAR

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Voltar ao topo