
Quando se fala em restabelecer o equilíbrio econômico e financeiro de contratos públicos, logo se vem à mente o trecho do art. 37, inciso XXII, da Constituição Federal, que assegura a permanência das tratativas iniciais do contrato incólumes até o final de sua vigência. Ocorre que, após a assinatura do contrato, a relação muda: passa a ser bilateral. E por este motivo, devem garantir a continuidade do serviço público e margens financeiras seguras para o contratado.
Daí porque o recorte “mantidas as condições efetivas da proposta”, do dispositivo constitucional, possa não estar a tratar especificamente da relação econômica, mas propriamente das condições de direito, das quais se vincularia o proponente de forma perene e rígida, no conceito de mutabilidade não-flexível.
A despeito disso, a Lei Geral de Licitações e Contratos possibilitou que o gestor optasse por escolhas drásticas a fim de assegurar a permanência das informações iniciais, como é o caso das garantias prévias ao contrato, a matriz de alocação de riscos vinculada ao equilíbrio contratual, a cláusula de retomada, dentre outros.
Ocorre que os objetos contratuais cuja avença se protraia no tempo, é possível a insurgência de contingências imprevistas para as quais as previsões ex-ante não sejam capazes de consignar. Exemplos claros dessas previsões são os contratos de empreitada, serviços de engenharia, desenvolvimento de projetos complexos, ou aqueles cuja normatização do objeto seja naturalmente sazonal, sob o viés econômico. Como se vê, são casos que demandam a discussão de fatores que são mutáveis, dinâmicos e estranhos ao olhar do direito.
Para Bruno Meyerhof Salama, enquanto o Direito é exclusivamente verbal, a Economia é também matemática; enquanto o Direito é marcadamente hermenêutico, a Economia é marcadamente empírica; enquanto o Direito aspira ser justo, a Economia aspira ser científica; enquanto a crítica econômica se dá pelo custo, a crítica jurídica se dá pela legalidade[1].
É neste cenário polissêmico que surgem as ferramentas de gestão contratual e de riscos, próprias do contrato administrativo, cujo principal objetivo é possibilitar a continuidade da execução do serviço ou obra, por meio de acordos mútuos, embora a ferramenta que neste paper será abordada, não deva ser confundida com os meios alternativos de resolução por conciliação, mediação e arbitragem.
Este manuscrito está a sustentar a possibilidade da aplicação de cláusula de dispute board nos contratos administrativos de longo prazo.
A figura do dispute resolution board (DRB) ou dispute adjudication board (DAB), foi inaugurado no direito norte-americano, com resultados positivos, como é o caso do projeto de construção do Eisenhower Tunnel (Colorado), do Mount Baker Ridge Highway Tunnel (Seattle, Washington), e do Chambers Creek Tunnel (Tacoma, Washington), citado pelo professor Ricardo Ranzolin [2].
No Brasil, além das regras conhecidas do Direito Processual, no estudo do direito público não há uma Lei Nacional que aborde definitivamente do assunto, porém, existem técnicas que se assemelham às ADRs – alternative dispute resolutions, como é o caso da previsão da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, que admite a arbitragem aplicada aos conflitos que envolvam a Administração Pública para de direitos disponíveis (art. 1º, §§ 1º e 2º), a Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015, que prevê as Câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos para mediação, e a possibilidade de celebração de Termo de Compromisso para solução de controvérsias, previsto na Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018.
Ademais, há quem sustente ter sido este instrumento inaugurado no artigo 23-A, da Lei nº 8.987, de 1995, com alterações promovidas no ano de 2005 e utilização marcada por certames datados em 2006, como no caso da Companhia do Metropolitano de São Paulo para construção da Linha 4 – Amarela, no entanto, as previsões do texto são abertas e abrangentes, como “emprego de mecanismos privados para resolução de disputas”.
Ocorre que a ausência de previsão na Lei Geral não foi óbice à existência de regulamentações por entes da Administração Pública. A Lei Municipal nº 16.873, de 22 de fevereiro de 2018, do Município de São Paulo, assim como a Lei Municipal nº 11.241, de 19 de junho de 2020, do Município de Belo Horizonte, dispõem especificamente sobre o tema do dispute board.
Por derradeiro, as décadas em que ficou silente a Lei nº 8.666/1993 foram substituídas pela expressa menção a tal instrumento na Lei nº 14.133/2021, a nova lei de licitações e contratos administrativos, que prevê a possibilidade de utilização “dos meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem”, em seu artigo 151.
1. Definição do dispute board, sua previsão, formas de utilização e aplicabilidade para questões de reequilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos
A definição do dispute board se confunde com seu objetivo geral, que é evitar que o litígio ou o conflito seja tratado apenas com sua insurgência, possibilitando que a Administração Pública acompanhe a execução do contrato e note os riscos previstos ex-ante se performando no tempo. Aliás, possibilitar que riscos sejam deliberados concomitante à ocorrência da execução contratual é o principal fator que distingue o disput board dos meios autocompositivos ou dos heterocompositivos, a saber, a conciliação, mediação e arbitragem.
No mesmo sentido, o instrumento evita que um terceiro estranho à relação bilateral, e desconhecedora das nuances da prestação de serviço, finde por ser o responsável pela decisão final, caso muito recorrente em demandas judiciais.
A previsão deste mecanismo se encontra no dispositivo do art. 151, da Lei Geral de Licitações, quando a mesma cita a possibilidade de resolução de controvérsias a partir de “comitês de resoluções de disputas”, vinculado à aplicação em controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, que abranjam: (1) o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, (2) ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes, e (3) ao cálculo de indenizações.
O rol é exemplificativo, cabe dizer.
Até porque, autorizado pela lei geral, podem os Estados, Distrito Federal e Municípios emitirem seus próprios regulamentos prevendo a forma e o modo da ocorrência dos disputes boards.
1.1. Dispositivos gerais sobre dispute boards no Brasil: sugestões de implementação a entes subnacionais: estados e muncípios.
São encontradiças variadas formas de previsão do mecanismo de disputas, no entanto, algumas delas são de imprescindível previsão, como é o caso do seu escopo de atuação, da delimitação de competência, a forma de escolha e composição ou do custeio pela atribuição extraordinária de seus membros.
O primeiro ponto a assentar, é que os contratos de pronto pagamento, cuja execução contratual não exija obrigações futuras, não justificam o implemento de medidas assecuratórias como é o dispute board, mesmo porque, a própria legislação remete a estes casos um tratamento ainda menos burocrático, como é o caso de substituição do termo de contrato por outros atos administrativos menos complexos, ou a possibilidade de contratações verbais, por exemplo.
A aplicação deste mecanismo de disputa servirá, portanto, àquelas situações que demandem condições anômalas e complexas, que surpreendem as partes a partir de termos que naturalmente são incompletos, mas, em virtude de situações extraordinárias, deverão ser deliberado novos temas surgidos no decurso da execução do contrato, ainda que previstas inicialmente.
Espécies em que usualmente são utilizados este mecanismo, são os contratos de serviços continuados, aqueles que têm longo prazo de execução, ou mesmo aqueles cuja complexidade o objeto exija um acompanhamento resolutório, como é o caso de contratos de obras, de concessões, parcerias público-privadas, ou modelagens acessórias, como é o caso do built to suit, por exemplo.
Existem três vértices de atuação dos comitês de disputa, que podem ser utilizados na resolução de conflitos. O primeiro deles é aquele que serve para expedir recomendações não obrigatórias e não vinculantes, conhecida como dispute review boards – DRB. Há, ainda, a vértice de atuação do comitê que prevê a possibilidade de tratar de decisões vinculativas e obrigacionais, conhecido como dispute adjudication boards – DAB. Por fim, a natureza mista, em que poderia o comitê emitir tanto recomendações não vinculantes, como decisões vinculativas, denominado combined dispute boards – CDB.
Estes termos foram previstos na legislação paulista – Lei 16.873, de 22 de fevereiro de 2018 –, a qual prevê o Comitê por Revisão, a quem compete emitir recomendações não vinculantes às partes em litígio, o Comitê por Adjudicação, para emitir decisões contratualmente vinculantes, e o Comitê Híbrido, o qual poderá tanto recomendar quanto decidir sobre os conflitos, cabendo à parte requerente estabelecer a sua competência revisora ou adjudicativa.
É recomendável que a composição destes comitês ocorram em número ímpar, possibilitando quórum de votação, que seus membros sejam especialistas na área do objeto contratual, e não tenham atuado na fase preparatória do processo ou incidam em casos de impedimento ou suspeição com quem tenha laborado, vedação que é usual nas normas regulamentares dos comitês.
Nos regulamentos brasileiros, geralmente há indicação de pessoas com formação em direito e engenharia, como é o caso das leis dos Municípios de São Paulo e de Belo Horizonte, sendo que um membro é escolhido pelo contratado, outro pela contratante, e o terceiro membro fica sendo escolhido em comum acordo entre contratante e contratado.
O regulamento pode possibilitar prazo aberto para instauração do comitê, possibilitando que seja o mesmo previsto nos editais como ato antecipatório à assinatura dos contratos, com prazo mínimo de antecedência. Isto viabiliza às partes a escolha de pessoas que tenham especialidade na matéria.
Há duas espécies de instauração do comitê. O primeiro, geralmente com funcionamento permanente, é instalado em termos concomitante à celebração do contrato, com duração por todo o período contratual No entanto, sua instauração pode se dar no curso do contrato já em execução, e após notificação de disputa por uma das partes. Neste caso, costuma-se denominar instauração ad hoc. Esta é uma permissão expressa do art. 153, da Lei Geral de Licitações.
No desempenho de suas funções, os membros do comitê devem sempre proceder com imparcialidade, com independência, com competência e com diligência, podendo o órgão realizar credenciamento de pessoas que se comprometam neste sentido e possuam capacidade técnica para tal.
Os custos referentes à instauração dos comitês, incluindo a remuneração detalhada de seus membros, geralmente compõem o orçamento da contratação, e são partilhadas entre as partes, outras, consignam que o custo deve ser suportado integralmente pelo contratado. No município de São Paulo, por exemplo, esta partilha é prevista na Lei, e é de 50% (cinquenta por cento) para cada parte. No entanto, é possível que o ente possibilite a previsão de tal percentual no momento da elaboração do edital de licitações.
Outro ponto imprescindível para regulamentações do dispute board, é a possibilidade de prever sua deliberação como óbice à instauração de outros meios alternativos de resolução do conflito, somente podendo ser instaurados outros meios quando fossem antes deliberados pelo comitê.
2. Prática de dispute boards para equilíbrios provenientes de oscilação na álea econômica decorrente de objetos sensíveis
A realidade da execução de contratos complexos geram incidentes recorrentes para a Administração Pública, como a paralisação de obras, projetos incompletos, insumos insuficientes ou excessivamente onerados e incontáveis atrasos no cronograma do projeto. Isto faz com que a busca de mecanismos de gestão, pelo administrador público, se torne ainda mais delicada.
Não há dúvidas de que estas intercorrências influenciam diretamente no valor e na composição de preços no serviço prestado, o que impacta muito mais o contratado do que a contratante, e quanto maior a obra ou o prazo da prestação de serviço, mais o contratante passa por nuances econômicos – assim entendidos pelos custos de transação, que vão além do aspecto financeiro –, mas também lidam com os consequentes impactos financeiros.
Na regra infraconstitucional, a permissão de renegociação contratual por reequilíbrio reside apenas nos casos em que o reequilíbrio decorra de casos de força maior, caso fortuito, fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis mas de consequências incalculáveis, e que comprovadamente inviabilizem a execução do contrato tal como pactuado inicialmente (art. 124, II, “d”, da Lei nº 14.133/21)
A intenção do legislador quando trata da matriz de alocação de riscos, aparentemente é que a Administração, de forma unilateral, preveja tais incidências em cláusula contratual, indicando a responsabilidade por estas incidências, ora a ela própria, ora ao contratado. Para a doutrina clássica, esta exigência decorre da natureza exorbitante das cláusulas contratuais e do poder de mutabilidade da Administração Pública[3].
Ocorre que na execução de contratos complexos, a exemplo dos contratos de longo prazo, os contratos de serviços contínuos, e sobretudo as contratações públicas na área de infraestruturas, este posicionamento rígido pode ocasionar prejuízos na entrega útil do resultado.
No início deste paper fora citado que a primeira experiência de utilização dos dispute boards no Brasil ocorreu no processo de construção da Linha 4-Amarela do Metrô do município de São Paulo, por exigência do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird).
Naquela ocasião, o comitê promoveu 11 recomendações no total, das quais, em sua maioria, tratavam sobre reequilíbrio contratual: alteração do método construtivo de determinado trecho da obra e seus impactos econômicos. O comitê entendeu que essa alteração decorreu do atraso na liberação da área por culpa do contratante, concluindo que a Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô) deveria pagar pelos serviços de retirada e disposição de solo contaminado prestados pelo contratado, nos quantitativos e custos por este indicado.
A disputa foi submetida à arbitragem, que manteve a decisão do dispute board. Houve, ainda, a judicialização, a qual novamente manteve a decisão do comitê[4].
2.1. A quem aproveita o implemento da cláusula de dispute board no acordo interpartes.
Via de regra, a discussão do reequilíbrio contratual gera exagerado ônus para o contratado, pois é ele quem deve solicitar, fazer provas, contestar, contrarrazoar e reivindicar o reequilíbrio que é conhecido de ambas as partes, mas dificilmente comprovado.
Em razão dessa assimetria de informações e da natureza multifatorial envolvida, a própria administração frequentemente nega o reequilíbrio, fundamentada na ausência de comprovação. Mas o fato é conhecido por ambas as partes. As relações do contrato a quo não são mais aquelas pactuadas no início.
A solução aparente é buscar a via judicial para o atendimento do pleito do contratado, e a este terceiro interventor também faltam dados e informações.
No contexto destas avenças, os dispute boards aparecem como um valioso mecanismo inter partes.
Primeiro, porque, os membros do comitê devem ter especialidade na área do objeto contratual, e devem ser designados no início da relação negocial, o que possibilita que haja a intervenção logo nas primeiras manifestações de desequilíbrio, auxiliando na produção de provas e na instrução processual.
Além disto, o instituição deste mecanismo auxilia na assimetria de informações possibilitando que sejam checados o avanço e a performance dentro e fora da administração do empreendimento, concomitante a sua ocorrência, além de possibilitar a identificação da iminência de conflito entre as partes, produzindo aconselhamentos técnicos, chamadas de dispute review boards, ou recomendações.
Considerações finais
O desenvolvimento socioeconômico do país sofre os efeitos de uma herança histórica, reconhecida por nutrir políticas públicas, sobretudo obras, que na maioria das vezes estão paralisadas por razões técnicas ou financeiras.
Essa realidade enseja a busca por mecanismos de gestão contratual e de conflitos que possam o dinamizar, mas para isso será necessário o desenvolvimento de uma racionalidade adaptativa, possibilitando maior flexibilidade negocial entre o poder público e o privado.
Na execução do contrato, é sempre comum o surgimento de desavenças fictas. Isto é, para a particular-contratado, as tratativas sempre irão considerar o fator lucro, enquanto que, para a Administração-contratante, há a necessidade da continuidade do serviço em valores usuais de mercado. Ao menos em tese, não são interesses antagônicos.
Com o implemento da flexibilização proposta, desavenças como esta são solucionadas com renegociações efetivas que visam mitigar o risco de descontinuidade da política pública, sem que a Administração se afaste de seu objetivo principal que é a busca do interesse público primário.
O implemento do dispute board como cláusula contratual apresenta vários fatores positivos nesta mitigação, como o baixo custo de instalação, a não-interrupção do projeto, a qualidade das decisões dos boards e o caráter técnico especializado. Uma excelente opção para o Poder Público.
Referências
[1] SALAMA, Bruno Meyerhof. O que é “Direito e Economia?”. In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito & Economia. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 49-61, p. 49.
[2] RANZOLIN, Ricardo. A eficácia dos dispute boards no Direito brasileiro. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 52, p. 197-219, jan.-mar.2017.
[3] Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “Ainda existem os chamados contratos administrativos?”, in Maria Sylvia Zanella Di Pietro/Carlos Vinícius Alves Ribeiro (Organizadores), Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 402.
[4] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Agravo de Instrumento nº 2096127-39.2018.8.26.0000. 10ª Câmara de Direito Público. Relator: des. Torres de Carvalho, São Paulo, 30 jul. 2018.