UM TENEBROSO JEITINHO BRASILEIRO
Não há como separar o “jeitinho brasileiro” de atos de corrupção
O Ministro do Supremo Tribunal Federal, STF, Luís Roberto Barroso afirma que: [1]
“Jeitinho brasileiro é uma expressão que comporta múltiplos sentidos, facetas e implicações. Inúmeros autores identificam nele um traço marcante da formação, da personalidade e do caráter nacional. Há quem analise o fenômeno com uma visão mais romântica, vislumbrando certas virtudes tropicais. Existem, por outro lado, análises críticas severas das características associadas ao jeitinho, reveladoras de alguns vícios civilizatórios graves.”
Esse vício de formação de caráter ficou agora muito evidente com a quantidade de “fura-filas” da vacina que se espalhou em todo o Brasil.
Este artigo pretende responder a uma indagação ainda não enfrentada:
As pessoas que fizeram conluios, conchavos, esquemas, destarte, atos de corrupção para furar a fila de prioridade da vacina, devem tomar a segunda dose?
A SEGUNDA DOSE DOS FURA FILAS
Os estudos clínicos fase 3 da CoronaVac e da vacina de Oxford-AstraZeneca avaliaram a eficácia das vacinas duas semanas após a aplicação da segunda dose.
O problema é que o “fura-fila” não poderá tomar a segunda dose, pois estará cometendo novo crime em continuidade delitiva, ou seja, haverá concurso de crimes na modalidade crime continuado.
Aprendemos no Tratado Doutrinário de Direito Penal que:
Configura-se quando o agente comete dois ou mais crimes da mesma espécie, mediante mais de uma conduta, estando os delitos, porém, unidos pela semelhança de determinadas circunstâncias (condições de tempo, lugar, modo de execução ou outras circunstâncias que permitam deduzir a continuidade).
Cleber Masson[2] explica que, historicamente, o crime continuado surgiu como forma de manifestação às leis penais excessivamente severas, se originando como fenômeno de defesa fundado em sentimento de humanidade, por meio dos glosadores italianos. O referido doutrinador continua, citando os ensinamentos de Carlos Fontan Balestra:
“A ideia por eles concebida foi posteriormente desenvolvida pelos práticos italianos dos séculos XV e XVI, destacando-se Julio Claro e Prospero Farinaccio, que propuseram considerar três ou mais furtos como um crime único, quando haviam sido cometidos em determinadas condições, especialmente de tempo e lugar, pois a legislação penal da época impunha a pena de morte ao autor do terceiro furto”.
Assim, quando o infrator resolve, por exemplo, tomar a segunda dose da vacina, a consequência será o cometimento de um novo crime em continuidade delitiva, neste caso, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. (1/6 a 2/3).
Na conexão temporal (condição de tempo), a doutrina e a jurisprudência dominantes exigem que os crimes não tenham sido cometidos em período superior a 1 (um) mês (entre um e outro), é exato período que deve ser aplicada a segunda dose para que o efeito seja efetivado.
Quanto ao fator espaço, a doutrina e a jurisprudência dominantes defendem que a prática do mesmo delito seguidamente em locais diversos não exclui a continuidade. Assim, admite-se que crimes praticados em bairros diversos de uma mesma cidade ou em cidades próximas podem ser entendidos como praticados em condições de lugar semelhantes. Igualmente, existe continuidade delitiva entre crimes praticados em cidades distintas, porém vizinhas.
Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça firmou orientação no sentido de que, para o reconhecimento da ficção jurídica em análise, além de preenchidos os requisitos de natureza objetiva, deve existir um dolo unitário ou global, que torne coesas todas as infrações perpetradas por meio da execução de um plano preconcebido, adotando, assim, a teoria mista ou objetivo-subjetiva.
Quanto ao funcionário público que aplica a segunda dose, teremos algumas situações práticas:
- Se quem aplicou a segunda dose foi o mesmo funcionário que aplicou a primeira, em tese, também cometerá novo crime em continuidade delitiva (Artigo 71 do Código Penal).
- Se quem aplicou a segunda dose foi outro funcionário público, este cometerá um dos crimes especificados no próximo item.
OS FURA-FILAS INFRATORES INTRANEUS
“Intraneus” é o funcionário público que comete crime contra a Administração Pública. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
Quando o funcionário público contribui com a formação do crime cometido em concurso com o “particular”, deve-se analisar o caso concreto, por exemplo:
Hipótese 01: funcionário público, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal, vacina um parente ou amigo que não está na fila de prioridade:
Solução jurídica: o crime não pode ser de prevaricação, pois a lista de prioridade não é definida em lei e o crime do artigo 319 do Código Penal exige que o agente tenha praticado o ato “contra disposição expressa de lei”.
Mas, o fato não é atípico, pois o funcionário público se apropriou de uma vacina (bem móvel), da qual tinha posse em razão do cargo e desviou em proveito alheio (alguém que não estava na fila de prioridade), portanto, o crime será o de peculato (CP, art. 312), cuja pena será de reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.
Hipótese 02: funcionário público exigiu, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, mas em razão dela, vantagem para vacinar alguém que não estava na lista de prioridade da vacina.
Solução jurídica: funcionário público cometeu o crime de concussão (CP, art. 316), cuja pena é de reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.
Hipótese 03: funcionário público solicitou ou recebeu, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, mas em razão dela, vantagem para vacinar alguém que não estava na lista de prioridade da vacina.
Solução jurídica: funcionário público cometeu o crime de corrupção Passiva (CP, artigo 317), cuja pena é de reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.
Hipótese 04: funcionário público que não tem a posse da vacina, a subtrai, ou concorre para que a mesma seja subtraída, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.
Solução jurídica: funcionário público cometeu o crime de peculato-furto (CP, artigo 312, § 1º), cuja pena é de reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.
Hipótese 05: funcionário público se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para furar a fila da vacina.
Solução jurídica: o crime será o de abuso de autoridade (Lei nº 13.869/2019, art. 33, parágrafo único), cuja pena será de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
O FURA-FILA E O PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
Determina o princípio da especialidade que a norma especial derroga a geral (lex specialis derogat generali), por exemplo, se o funcionário público for o prefeito, os crimes serão os de responsabilidade dos prefeitos (art. 1º, do Decreto-Lei nº 201/1967), in verbis:
Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:
I – apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio;
II – utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou serviços públicos; (…)
OS FURA-FILAS INFRATORES EXTRANEUS
Diz-se extraneus ao particular que, sabendo da qualidade do funcionário público (intraneus), comete crime em concurso de pessoas com o mesmo, portanto, é possível que um particular (extraneus) concorra para o crime funcional praticado pelo funcionário público (intraneus).
Só será possível identificar o crime cometido peloextraneus, analisando o caso concreto. Seguem algumas hipóteses:
Hipótese nº 01: Tício oferece ou promete vantagem indevida a funcionário público, para que seja vacinado, afrontando a ordem de prioridade da vacina.
Solução jurídica: Tício cometeu o crime de corrupção ativa (CP, art. 333), cuja pena é de reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.
Hipótese nº 02: Tício declarou, em documento público ou particular, que era enfermeiro e, portanto, pertencia à ordem de prioridade de vacinação. Provou-se que a declaração era falsa e tinha como escopo furar a fila da vacinação.
Solução jurídica: Tício cometeu o crime de falsidade ideológica (Art. 299 do CP), cuja pena é de reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular.
Hipótese nº 03: Tício atribuiu-se falsa identidade para obter vantagem, qual seja, furar a fila da vacina.
Solução jurídica: Tício cometeu o crime defalsa identidade (Art. 307 do CP), cuja pena é de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa, se o fato não constitui elemento de crime mais grave.
Ainda, em análise do caso concreto, será possível a ocorrência do crime de infração de medida sanitária preventiva, artigo 268 do Código Penal, in verbis:
Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, e multa.
UMA CONCLUSÃO INDISPENSÁVEL
O egoísmo vil de determinadas pessoas não pode receber o duplo privilégio, in casu, os “fura-filas” devem ser identificados, processados pela conduta imoral e criminosa e, mais: não podem continuar cometendo o mesmo crime recebendo a segunda dose, afinal é preciso impregnar uma nova contra cultura na mente do brasileiro: “o jeitinho brasileiro é um ato de corrupção e precisa ter consequências”.
[1] BARROSO, L. R. (01 de 11 de 2018). https://www.jota.info/autor/luis-roberto-barroso. Fonte: JOTA: https://www.jota.info.
[2] MASSON, Cleber. Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120) – vol.1 / Cleber Masson. – 13. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020, p. 660.