As propostas de modificações do crime de furto no Direito Penal brasileiro.

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Furto necessário, furto insignificante e queixa-crime no furto. Inovação ou retrocesso?

Em termos conclusivos, diga-se, que o Projeto de Lei 4540, de 2021 tem tudo para prestar grande contribuição para o aprimoramento do direito penal deste Torrão, levando em consideração que os três temas, a saber, furto necessário, furto insignificante e a dogmática da ação penal no crime de furto são relevantes para a sociedade, não obstante haver no país algumas vozes isoladas, sem conhecimento, cabotinos de redes sociais, se insurgindo contra as propostas de mudanças, mas que a meu aviso são viáveis e necessárias para promoção de justiça social. Assim, a previsão legal da figura do furto necessário, muito embora já contemplado com o estado de necessidade como excludente da ilicitude, torna-se um lembrete válido para o intérprete da lei; a previsão textual do princípio da insignificância também é medida recomendada, diante das inserções em antanho, e sobre a dogmática da conversão da ação pública incondicionada para ação de iniciativa privada, a meu sentir, não deveria proceder, pois assim, a vítima de furto de um celular, no valor de R$ 2.000 reais, por exemplo, teria que contratar os serviços de um bom advogado para o oferecimento da queixa-crime diretamente em juízo, certamente, um serviço que ficaria bem mais oneroso que o próprio valor do aparelho celular, sendo melhor para a vítima, contratar o advogado para buscar a reparação do dano na justiça cível, mesmo porque a Justiça penal somente serviria para se buscar a formação de um título judicial, para fins de reconhecimento dos efeitos penais automáticos da condenação, art. 91, I, do Códex repressivo pátrio. O que a vítima quer, na verdade, de boa, é buscar reparar o seu prejuízo e mais nada.  (Prof. Jeferson Botelho)

RESUMO. O presente texto tem por objetivo principal analisar as novas propostas de modificações do crime de furto, em especial, levadas a efeito pelo Projeto de Lei nº 4540, de 2021, cujas propostas criam as modalidades de furto necessário e furto insignificante, além de modificar a temática da ação penal nesse crime patrimonial.

Palavras-chave. Direito penal; furto; necessário; insignificante; ação penal; privada; segurança; jurídica.

INTRODUÇÃO

O crime de furto faz parte dos crimes contra o patrimônio, Título II, do Código Penal, decreto-Lei nº 2848, de 07 de dezembro de 1940, com 08 capítulos, desde o artigo 155 até 183, sendo o crime de furto definido nos artigos 155 e 156 do CP.

Desde a publicação do atual Código Penal, o crime de furto foi modificado incialmente por meio da Lei nº 9.426, de 96, com acréscimo do § 5º, prevendo que a pena é de reclusão de três a oito anos, se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior.

A lei nº 13.330, de 2016, incluiu o § 6º, para prevê a qualificadora do crime do chamado crime de abigeato, segundo o qual a pena é de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos se a subtração for de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes no local da subtração.   

Por sua vez, a Lei nº 13.654, de 2018, na tentativa de enfrentar as ações do Novo Cangaço ou Terrorismo doméstico no país, incluiu o § 4º-A e § 7º, definindo respectivamente, em que a pena é de reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos e multa, se houver emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum, e a pena é de reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos e multa, se a subtração for de substâncias explosivas ou de acessórios que, conjunta ou isoladamente, possibilitem sua fabricação, montagem ou emprego.          

Por fim, na linha evolutiva, a Lei nº 14. 155, de 20121, incluiu os §§ 4º-B e C, respectivamente, consignando que a pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se o furto mediante fraude é cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático, conectado ou não à rede de computadores, com ou sem a violação de mecanismo de segurança ou a utilização de programa malicioso, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo, e que a pena prevista no § 4º-B deste artigo, considerada a relevância do resultado gravoso:    

I – aumenta-se de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o crime é praticado mediante a utilização de servidor mantido fora do território nacional;    

II – aumenta-se de 1/3 (um terço) ao dobro, se o crime é praticado contra idoso ou vulnerável.   

A discussão atual se volta para as modificações propostas pelo PL 4540, de 2021, cujas propostas criam as modalidades de furto necessário e furto insignificante, além de modificar a temática da ação penal nesse crime patrimonial, tema que se pretende discorrer de forma não exauriente neste ensaio jurídico.

1. DO MODELO ATUAL

Além das modificações processadas no crime de furto, conforme explicações em epígrafe, o presente tipo penal mantém suas redações originárias nas disposições do furto simples, do furto qualificado e no furto de coisa comum, este definido no artigo 156 do Código Penal.

Assim, o furto simples previsto no artigo 155, e seus três parágrafos, continua com a mesma redação, cuja conduta prevista no tipo básico, consiste em subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel, com pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa.

A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso noturno. Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa. Segundo o § 3º, equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico.

O furto qualificado vem previsto no § 4º, artigo 155, onde a pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido:

I – com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa;

II – com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza;

III – com emprego de chave falsa;

IV – mediante concurso de duas ou mais pessoas.

O furto de coisa comum é previsto no artigo 156, cuja conduta típica consiste em subtrair o condômino, coerdeiro ou sócio, para si ou para outrem, a quem legitimamente a detém, a coisa comum, pena de detenção, de seis meses a dois anos, ou multa. Um grande diferencial neste delito em relação ao previsto no art. 155, é que no furto de coisa comum, somente se procede mediante representação. Não é punível a subtração de coisa comum fungível, cujo valor não excede a quota a que tem direito o agente.

2. DAS PROPOSTAS DE MUDANÇAS

Visto o atual panorama do crime de furto no Código Penal, agora torna-se imperativo apontar as propostas de modificações por meio do PL nº 4540, de 2021, a saber:

Art. 1º O art. 155 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar com a seguinte redação:

Furto “Art. 155…………………………………………………………………………………. …..

§1º Para fins do disposto no caput, considera-se:

Furto por necessidade

I – quando a coisa for subtraída pelo agente, em situação de pobreza ou extrema pobreza, para saciar sua fome ou necessidade básica imediata sua ou de sua família;

Furto insignificante

II – se insignificante a lesão ao patrimônio do ofendido.

………………………………………………………………………………………………

§ 2º Se é de pequeno valor a coisa furtada e se não for o caso de absolvição, o juiz deverá substituir a pena de reclusão pela pena restritiva de direitos, ou aplicar somente a pena de multa.

………………………………………………………………………………………………….

§8º Não há crime quando o agente, ainda que reincidente, pratica o fato nas situações caracterizadas como furto por necessidade e furto insignificante, sem prejuízo da responsabilização civil.

§ 9º Em todas as modalidades de furto, a ação penal se procede mediante queixa.” (NR).

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Num primeiro momento, salta aos olhos do estudioso em ciência jurídica que o PL nº 4540/2021, tem por destaque a inclusão do furto necessário, da figura do furto insignificante e a temática da ação penal no crime de furto. Segundo se depreende, não há crime quando o agente, ainda que reincidente, pratica o fato nas situações caracterizadas como furto por necessidade e furto insignificante, sem prejuízo da responsabilização civil.

Antes mesmo de comentar as três novas modificações propostas no PL 4540/21, é mister elogiar a fundamentada justificativa apresentada pela autora do Projeto de Lei, já afirmando que nunca havia visto uma justificativa tão bem motivada como a que se embasa o presente Projeto de Lei, o qual citaremos alguns trechos durante este ensaio.

2.1 FURTO NECESSÁRIO

Assim, de acordo com a proposta prevista no PL nº 4540, de 2021, o furto necessário ocorre quando a coisa for subtraída pelo agente, em situação de pobreza ou extrema pobreza, para saciar sua fome ou necessidade básica imediata sua ou de sua família.

Sobre o furto necessário, a justificativa do Projeto de Lei acentua:

A pandemia encontrou e aprofundou uma conjuntura de vulnerabilidade socioeconômica, que conjugava já altas taxas de desemprego e precarização no mundo do trabalho e um processo inflacionário, penalizando, principalmente, as famílias mais pobres. O desemprego afeta especialmente nossa população jovem e negra, que, não por coincidência, protagoniza também os índices de encarceramento. Entre os jovens de 18 a 24 anos, a taxa de desocupação ficou em 29,5% no 2º trimestre deste ano, aproximadamente o dobro da média geral, que inclui toda a população. Da mesma forma, a taxa de desocupação entre negros é muito maior quando comparada à taxa entre brancos, segundo o IBGE. A inflação atual, segundo o Indicador de Inflação por Faixa de Renda do IPEA, é bem maior para as famílias de baixa renda. Para este segmento, a alta decorre principalmente de variações dos seguintes preços (no acumulado de 12 meses até setembro): a) alimentos no domicílio, com destaque para: carnes (24,9%); aves e ovos (26,3%) e leite e derivados (9,0%) b) 28,8% da energia elétrica, c) 34,7% do gás de botijão. De acordo com a Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, realizada mensalmente pelo DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos)21 em 17 capitais, comparando o valor em março de 2020 e março de 2021, o preço do conjunto de alimentos básicos teve aumento em todas as capitais pesquisadas. Neste cenário, mais da metade da população sofre com algum grau de insegurança alimentar e quase 10% está passando fome. São cerca de 20 milhões de brasileiros que não tem o que comer em suas casas, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Esta escalada da miséria e da fome no Brasil provocada pela crise social e econômica coloca novamente em evidência o problema dos furtos de itens básicos e de pequeno valor e do chamado furto famélico, isto é, o furto de alimentos destinados a satisfazer necessidades vitais básicas e imediatas, como pode se verificar nas recentes matérias veiculadas na mídia sobre a sobrecarga do judiciário com furtos praticados por pessoas famintas. A figura do “furto famélico”, isto é, o furto motivado pela necessidade de se alimentar é, ao menos em tese, pacificamente admitida no direito brasileiro como modalidade do Estado de Necessidade, excludente de ilicitude prevista nos artigos 23 e 24 do Código Penal, aplicada ao crime de furto. Na legislação brasileira, o Estado de Necessidade é uma das excludentes de ilicitude previstas no artigo 23 e se constitui de dois elementos: a situação de necessidade, isto é, perigo atual a bem jurídico do agente ou de terceiro, e a ação necessária, a ação que lesa bem jurídico alheio quando não há uma alternativa para evitar o perigo, se não pela sua ação imediata. Ou seja, no Estado de Necessidade há um conflito de direitos cuja solução precisa ser resolvida mediante a ponderação dos direitos envolvidos, no qual o bem jurídico alheio é sacrificado para a preservação do bem jurídico ameaçado, reconhecido como sendo de maior importância. No caso do “furto famélico”, ou furto por necessidade a situação de necessidade está configurada pelo perigo ao bem jurídico vida do agente ou de pessoas próximas a ele. A ação necessária é a subtração de coisa móvel que possa satisfazer necessidades materiais imediatas, em geral, mas não apenas alimentos

Nesta proposta, a própria justificativa se refere ao estado de necessidade, excludente de ilicitude já contemplada no Código Penal, artigo 23, I, c/c artigo 24, o que dispensa maiores comentários acerca da proposta.

2.2 FURTO INSIGNIFICANTE

Segundo o referido Projeto de Lei, haverá furto insignificante quando insignificante a lesão ao patrimônio do ofendido.

Acerca do furto insignificante, a justificativa do PL em espécie, traz importantes informações, julgados, jurisprudência, apresentando um interessante e relevante comparativo com os crimes tributários.

“(…) Fundamental aqui trazer à tona a comparação com os crimes tributários. Em primeiro lugar pela semelhança essencial entre os crimes fiscais e o crime de furto, uma vez que a finalidade usual em ambos os casos é obter vantagem econômica, seja a partir da supressão de tributos, seja a partir da subtração de coisa alheia móvel. Em nenhum dos casos há o emprego de violência ou grave ameaça, sendo o único resultado o prejuízo econômico causado a um particular ou ao erário. Por último, até mesmo as penas são parecidas (um a quatro anos para o crime de furto; dois a cinco anos para os crimes contra a ordem tributária). Justamente por conta dessas semelhanças é possível perceber o quanto o tratamento penal de ambas as situações é discrepante. Nesta linha, é de ressaltar que o tratamento conferido ao princípio da insignificância nos crimes tributários é bem mais benéfico que o conferido aos crimes de furto.

O princípio da insignificância é uma construção doutrinária elaborada a partir de uma perspectiva material da tipicidade. É a postulação de que a adequação de uma conduta ao tipo penal só pode ocorrer quando há efetiva lesão, ou perigo de lesão, do bem jurídico tutelado pela norma penal. Ainda que não haja expressa previsão na legislação brasileira, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhece a sua incidência aplicando-o, fundamentalmente, nos crimes tributários e nos crimes patrimoniais. Os critérios utilizados para a aferição da insignificância são, no entanto, bastante diversos se estamos tratando de crimes tributários ou crimes patrimoniais. Primeiro porque, ao contrário do que ocorre nos demais crimes, o reconhecimento da insignificância nos crimes tributários depende exclusivamente do valor da quantia sonegada, enquanto que nos demais crimes a aplicação do princípio da insignificância depende de outros elementos a princípio estranhos à sua aplicação (como, por exemplo, antecedentes criminais). A principal diferença reside, no entanto, na discrepância entre os valores considerados para o reconhecimento da insignificância dos delitos fiscais e os crimes patrimoniais. Com a edição da Lei 10522/02, que dispensa a obrigatoriedade na cobrança de débitos menores de R$ 10.000,00 (dez mil reais), os tribunais passaram a reconhecer a insignificância dos delitos tributários com valores menores que este patamar. Posteriormente, a edição das Portarias 75/12 e 130/12 elevou para R$ 20.000,00 (vinte mil reais) o valor mínimo para o ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, levando os tribunais superiores a reorientarem sua jurisprudência para o novo valor. Em todos os casos em que a conduta se encontra dentro dessa faixa há o reconhecimento, pelo STF, do princípio da insignificância. No entanto, no caso dos crimes patrimoniais a situação é bastante diversa. A análise jurisprudencial nos tribunais superiores (STF e STJ) revelou um quadro bastante grave em relação a aplicação do princípio da insignificância nos processos criminais de furto. Por um lado, a alta incidência de habeas corpus rejeitados por variados motivos (que serão tratados abaixo), aponta para um cenário de criação de sucessivos obstáculos que visam impedir a aplicação do princípio da insignificância levando a condenações por furtos (ou tentativa de) de bens com valores completamente irrisórios (e que muitas vezes foram restituídos às vítimas). Por outro lado, os poucos casos de concessão da ordem de habeas corpus para absolver ou trancar a ação penal – em geral concedida em casos especialmente absurdos envolvendo bens de valores absolutamente irrisórios – revelam uma alta resistência das instâncias anteriores em aplicar o princípio da insignificância, o que parece indicar um grave cenário se considerarmos que a maioria dos casos não chega aos tribunais superiores(…)”

O princípio da insignificância é tema bem marcante na doutrina pátria. O tema não é positivado no Direito Penal. Mas a doutrina e a jurisprudência dedicam importantes estudos acerca da temática.

O PLS nº 236/2012, que visa promover uma reforma na Legislação Penal Brasileira, traz textualmente a previsão do referido princípio, com todos os requisitos legais para adoção do predito princípio, justamente no art. 28, § 1º, quando diz expressamente:

Princípio da Insignificância

§ 1º. Também não haverá fato criminoso quando cumulativamente se verificarem as seguintes condições:

a) mínima ofensividade da conduta do agente;

b) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento

c) inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Decerto que existem algumas Súmulas dos Tribunais Superiores, proibindo a aplicação do princípio da insignificância em diversas matérias, como nos crimes contra a Administração Pública, no âmbito da violência doméstica e familiar, nos casos de transmissão clandestina, dentre outras.

Súmula 599 do STJ: “O princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a Administração Pública.

Súmula 589 do STJ: É inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas.

SÚMULA 606 – STJ – NÃO SE APLICA O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AOS CASOS DE TRANSMISSÃO CLANDESTINA DE SINAL DE INTERNET VIA RADIOFREQUÊNCIA QUE CARACTERIZAM O FATO TÍPICO PREVISTO NO ARTIGO 183 DA LEI 9.472/97.

Os Tribunais Superiores são divergentes acerca da aplicação ou não do princípio da Insignificância nos crimes contra a fé pública, crimes ambientais, crimes militares, além de outros.

2.3 NOVA PROPOSTA PARA AÇÃO PENAL

Consoante proposta do Projeto de Lei, em todas as modalidades de furto, a ação penal se procede mediante queixa. Sobre esse tema, a justificava do PL 4540/21, apresenta também bons fundamentos jurídicos e legais, a saber:

“(…) Sobre o processamento mediante queixa, importante notar que, no sistema jurídico brasileiro, a ação penal de iniciativa privada é regida pelo princípio da oportunidade, ao contrário da ação penal pública, que é regida pelo princípio da obrigatoriedade, cabendo, portanto, ao ofendido decidir se tem ou não interesse na proposição da ação. Nesse sentido, não se pode olvidar que o furto, inserido no Título II do Código Penal – Dos Crimes contra o Patrimônio – tem notório conteúdo privado, eis que apenas o patrimônio do ofendido é atingido pela conduta criminalizada, portanto, plenamente admissível que o exercício da persecução penal se dê mediante queixa. Pesquisa Nacional de Vitimização18, publicada em 2013, pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, apresenta dados aptos a embasar uma reforma legislativa tal qual a proposta pelo presente Projeto de Lei. Segundo o estudo, nos prévios 12 meses à realização das entrevistas, 9,8% dos entrevistados declararam ter sofrido furto de objetos, 1% furto de automóveis e 0,4% furto de motocicleta. Dentre as razões que levam as pessoas ofendidas em seu patrimônio a realizarem o registro da ocorrência perante as autoridades policiais, a recuperação do bem furtado é o motivo predominante nas três espécies de furto (68,6% dos que tiveram sua motocicleta furtada, 51% dos que tiveram o carro furtado e 39,7% dos que tiveram algum objeto furtado), ao passo que a punição do agente responsável não alcança uma taxa expressiva (14,8% das pessoas que tiveram sua motocicleta furtada, 15,4% dos que tiveram o carro furtado e 18,5% dos que tiveram algum objeto furtado). Segundo a pesquisa de André Luís Alves de Melo, desde os anos 1990, “todos os países da América Latina, menos o Brasil, adotam a oportunidade da ação penal expressamente em suas legislações”. Com suas particularidades, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Venezuela, Peru, Equador, Bolívia, Nicarágua, El Salvador e Cuba adotam o princípio da oportunidade da ação penal em casos em que o interesse público não é afetado. Além disso, República Dominicana e Costa Rica preveem a insignificância dentre as razões para a ação penal deixar de ser proposta pelo órgão competente. E, por fim, México, Honduras e Colômbia adotam de forma mais genérica a oportunidade da ação penal pelo órgão acusatório. Por fim, nota o autor que “na América Latina prevalece a obrigatoriedade da ação penal em delitos mais graves; e a oportunidade da ação penal para delitos menos graves (…)”

Nos dias atuais, a ação penal no crime de furto, artigo 155 do CP, é pública incondicionada, devendo o Estado adotar todas as medidas legais pertinentes, tão logo tome conhecimento dos fatos, não estando subordinado a nenhuma condição. Entretanto, no crime de furto de coisa comum, artigo 156 do CP, a ação é pública condicionada à representação do ofendido.

Importar ressaltar que recentemente, por meio da Lei nº 13.964, de 2019, que introduziu o Pacote Anticrime, o crime de estelionato, também pertencente ao rol dos crimes contra o patrimônio passou a ser, via de regra, crime de ação penal pública condicionada a representação, salvo se a vítima for:

 I – a Administração Pública, direta ou indireta;           

 II – criança ou adolescente;          

 III – pessoa com deficiência mental; ou         

 IV – maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.  

Faz-se mister ressaltar ainda, que no rol dos crimes contra o patrimônio, o crime de outras fraudes, artigo 176 do CP, consistente em tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento, também somente se procede mediante representação, e o juiz pode, conforme as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.

Vale ressaltar ainda que no rol dos crimes contra o patrimônio, existem possibilidades de a ação penal ser de iniciativa privada, como nos casos de dano qualificado, por motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima, artigo 163, parágrafo único, inciso IV, e para o crime de Introdução ou abandono de animais em propriedade alheia, artigo 164, todos do CP, onde a ação penal somente se procede mediante queixa, a teor do artigo 167 do Código Penal.

REFLEXÕES FINAIS

Conforme de pode perceber, o Projeto de Lei nº 4540, de 2021 trata de um tema de extrema importância, social e jurídico, sendo, portanto, pertinente, legal e oportuno. Talvez, durante muito tempo dedicado aos estudos de assuntos jurídicos, raramente se repara com proposta legislativa tão bem fundamentada como a que por ora de se apresenta. Pode-se não concordar com as propostas apresentadas, jamais com o seu recheio de fundamentos jurídicos, sólidos, claros, como deveriam ser todos as propositivas de modificações da lei, em especial, a penal.

Como se aflora no presente ensaio, o assunto central da proposta legislativa é promover mudanças no crime de furto, sobretudo, com a criação da figura do furto necessário, da aplicação do princípio da insignificância no crime de furto e modificando a temática da ação penal, que conforme o texto, deveria deixar de ser ação penal pública incondicionada para se tornar ação pública de iniciativa privada.

É claro que os três temas postos são de extrema importância para o Direito Penal, mesmo porque a previsão legal do jeito que se encontra já passou dos oitenta anos, e a sociedade evoluiu, os tempos mudaram-se, a mutação social é fruto das transformações da sociedade.

O primeiro assunto é a criação do chamado furto famélico, referido na maior parte da doutrina, mas não explicitado legalmente na legislação penal brasileira. É certo que o furto necessário, como se propõe no Projeto de Lei se assemelha à excludente de ilicitude do estado de necessidade, previsto no artigo 23, inciso I, e detalhado no artigo 24, ambos do Código Penal. Destarte, estaria presente a hipótese de furto necessário quando a coisa for subtraída pelo agente, em situação de pobreza ou extrema pobreza, para saciar sua fome ou necessidade básica imediata sua ou de sua família, não havendo crime quando o agente, ainda que reincidente, pratica o fato nas situações caracterizadas como furto por necessidade e furto insignificante, sem prejuízo da responsabilização civil.

Neste caso, o legislador estaria apenas lembrando e reforçando a ideia da existência do estado de necessidade no crime de furto, como aconteceu recentemente no Brasil, com a edição da Lei dos Crimes Ambientais que também reforçou essa ideia quando previu expressamente no comando normativo da Lei nº 9.605, de 1998, especificamente nos crimes contra a fauna, quando no artigo 37, estatui que não é crime o abate de animal, quando realizado em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família, para proteger lavouras, pomares e rebanhos da ação predatória ou destruidora de animais, desde que legal e expressamente autorizado pela autoridade competente, por ser nocivo o animal, desde que assim caracterizado pelo órgão competente.

E nessa perspectiva, fica muito fácil entender que em havendo rota de colisão entre direitos fundamentos da vida e propriedade, fica muito claro que a vida tem prioridade sobre todos os demais bens jurídicos, notadamente, em relação aos crimes patrimoniais.

Outro tema de larga importância é a expressa previsão legal em sede de direito penal para adoção do princípio da insignificância nos crimes de furto. Os Tribunais Superiores têm aplicado o referido princípio nos crimes patrimoniais, em especial, quando o bem jurídico é tão ínfimo que não se justifica plenamente a intervenção do aparato penal, aliás um sistema de sistema caro, oneroso e às vezes moroso. Assim, trata-se de providência importante para a segurança pública no Brasil, tendo-se em vista que alguns juízes aplicam o referido princípio, mas outros magistrados são resistentes no tocante à sua aplicação.

Por derradeiro, resta-nos o enfrentamento acerca da proposta de mudança da ação penal nos crimes de furto, que passaria de ação pública incondicionada para ação de iniciativa privada, a exigir o manejo da queixa-crime por parte do querelante.

É sabido que a grande maioria do expediente nas Unidades Policiais do Brasil, se refere aos registros policiais por crimes de furto, notadamente, furtos de bicicleta, celulares, relógios, joias, veículos automotores, cordões de ouro, além de outros.

Nos dias atuais, dependendo do bem subtraído, as vítimas não acionam a Polícia, às vezes em razão da demora no atendimento, às vezes ficando tão somente no registro da ocorrência, sem nenhuma expectativa de apreensão da rés com o autor do crime.

Isso tem desestimulado as vítimas a desinteressarem pelo acionamento da Polícia, somando aos sérios aborrecimentos com as famosas intimações da polícia e da justiça quando da apuração do fato ou processo judicial, levando as vítimas a perdas de tempo, agregado aos constrangimentos com as famosas acareações e reconhecimentos.

Tudo isso levam às vítimas a não se interessarem pelo registro dos boletins de ocorrências, preferem perder o objeto material, por conta da demasiada demora do sistema de justiça, para chegar ao nada, conduzindo para aquilo que em criminologia se chama cifras negras.

Para minimizar os acionamentos da Polícia aos locais de ocorrência de furto, a própria Polícia tem criado o sistema de Delegacias Virtuais para a própria vítima registrar o evento criminoso de forma eletrônica, evitando os desgastes citados em epígrafe.

A meu sentir, com a devida vênia, a proposta da ação penal nos crimes de furto ficaria melhor se a ação continuasse pública, nas mãos do Ministério Público, mas a depender da manifestação da vítima para a deflagração do processo, portanto, deixaria de ser ação penal pública incondicionada para transformar-se em ação penal pública condicionada à representação da vítima, como fez com o crime de estelionato.

Desta forma, a ação penal permaneceria nas mãos do Ministério Público, e livraria a vítima das exorbitantes despesas com honorários advocatícios, despesas processuais, para a propositura da queixa-crime. Deixando com o Ministério Público a legitimidade, certamente, a vítima do furto poderia optar em iniciar ou não o processo, e até representar junto à autoridade policial para ratificar a prisão em flagrante do desalmado larápio patrimonial.

Numa última observação, sabe-se que a Justiça Militar é especial, e quando há mudanças no Código Penal comum, é natural que inúmeras vozes se levantam para essa temática. Assim, o Código Penal Militar, Decreto-Lei nº 1001, de 1969, também tipifica o crime de furto no artigo 240 e o crime de furto de uso no artigo 241, sendo certo que a legislação castrense expressamente determina que todos os crimes ali previstos são de ação penal pública, artigo 121 do CPM, que literalmente preceitua que a ação penal somente pode ser promovida por denúncia do Ministério Público da Justiça Militar.

Assim, acredita-se que o Projeto de Lei deveria prevê expressamente disposição sobre a aplicação ou não do princípio da insignificância e acerca da ação penal nos crimes miliares, a fim de se evitarem discussões desnecessárias, e reforçar o princípio da segurança jurídica.

Em termos conclusivos, diga-se, que o Projeto de Lei 4540, de 2021 tem tudo para prestar grande contribuição para o aprimoramento do direito penal deste Torrão, levando em consideração que os três temas, a saber, furto necessário, furto insignificante e a dogmática da ação penal no crime de furto são relevantes para a sociedade, não obstante haver no país algumas vozes isoladas, sem conhecimento, cabotinos de redes sociais, se insurgindo contra as propostas de mudanças, mas que a meu aviso são viáveis e necessárias para promoção de justiça social.

Assim, a previsão legal da figura do furto necessário, muito embora já contemplado com o estado de necessidade como excludente da ilicitude, torna-se um lembrete válido para o intérprete da lei; a previsão textual do princípio da insignificância também é medida recomendada, diante das inserções em antanho, e sobre a dogmática da conversão da ação pública incondicionada para ação de iniciativa privada, a meu sentir, não deveria proceder, pois assim, a vítima de furto de um celular, no valor de R$ 2.000 reais, por exemplo, teria que contratar os serviços de um bom advogado para o oferecimento da queixa-crime diretamente em juízo, certamente, um serviço que ficaria bem mais oneroso que o próprio valor do aparelho celular, sendo melhor para a vítima, contratar um advogado para buscar a reparação do dano na justiça cível, mesmo porque a Justiça penal somente serviria para se buscar a formação de um título judicial, para fins de reconhecimento dos efeitos penais automáticos da condenação, art. 91, I, do Códex repressivo pátrio. O que a vítima quer, na verdade, de boa, é buscar reparar o seu prejuízo e mais nada.

Nesse quesito, acredita-se que transformar-se a ação penal do crime de furto em ação pública condicionada à representação da vítima, deixando para o Ministério Público o seu processamento em juízo seria de melhor alvitre, e mesmo assim, pouca gente sairia de sua casa para se dirigir a Justiça a fim de solicitar providências, principalmente quando a vítima souber que o seu bem subtraído não será recuperado, e mesmo condenado, a pena do autor será transformada em restritiva de direitos; e assim, no atual estágio social, com os preços da gasolina lá nos céus, o gás de cozinha maltratando o pobre, ninguém quer perder tempo, ninguém quer ser constrangido por horas a fio, quando se dirige ao sistema  de justiça e o agente público quer fazer perguntas sobre um fato que aconteceu a 10 ou 15 anos atrás.

É certo que a simples mudança legislativa não tem a potencialidade de transformar a sociedade; aliás não é papel precípuo do direito penal operar transformações sociais, senão promover os reajustes sociais, daqueles recalcitrantes ao contrato social, ou daqueles que tiveram negado acesso à educação e saúde de qualidade, tudo por conta de falsos gestores, curiosos impertinentes, corruptos habituais, atrozes sociais, somando a um sistema de pretensão punitiva estatal ultrapassado, um modelo criado para não funcionar, algo obsoleto, arrogante, ignóbil e desprezível.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República do Brasil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 15 de junho de 2022.

BRASIL. Código Penal Brasileiro. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em 15 de junho de 2022.

BRASIL. Projeto de Lei do Senado nº 236/2012. Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404. Acesso em 15 de junho de 2022.

BRASIL. Projeto de Lei nº 4540, de 2021. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2127590. Acesso em 15 de junho de 2022.

BRASIL. Código Penal Militar. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1001.htm. Acesso em 15 de junho de 2022.

PEREIRA, Jeferson Botelho. O Princípio da Insignificância no Direito Penal. Disponível em https://jus.com.br/artigos/79083/o-principio-da-insignificancia-no-direito-penal. Acesso em 15 de junho de 2022.

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